Durante essa semana acompanhei por alto uma polêmica envolvendo youtubers sobre o novo filme de Walter Salles cujo mote é o elitismo do filme. De fato é uma obra que foca nos de cima, uma família de classe média alta, abastada. É a cara de seu diretor, um banqueiro que se diverte com cinema, mas que já fez obras lindas como Central do Brasil, cuja memória afetiva me é muito cara. Talvez um dia eu deva rever esse filme, mas a expressão de Fernanda Montenegro é inesquecível naquele Brasilzão de meu deus. Aliás, aqui nesse novo filme novamente mãe e filha mostram o “talento natural” de suas expressividades marcantes.

E realmente as críticas são pertinentes, o filme contém o pacote completo classe média + Caetano caminhando contra o vento e etc. Há um elã da juventude que lutava contra a ditadura e este representa uma memória e uma estética. Você precisa ter estudado história para entender esse estilo e até mesmo uma espécie de fascínio esquizofrênico pelo período, uma romantização daquele momento de luta. Mas pode muito bem ter passado ao largo dessa perspectiva, porque ao invés de estudar estava vivendo e pagando as contas, não é mesmo?

E de fato o povo brasileiro não viveu aquilo que parte da esquerda romantizava ou de que se orgulha justamente por isso não está na tela de Walter Salles. É uma visão de classe média, é um pouco novela da globo, rodada em Copacabana. Aliás a própria personagem da empregada doméstica, cujo tema daria uma gigantesca discussão sobre a sociologia da desigualdade brasileira, é retratada quase como uma personagem de malhação, normalizada full. Podia haver mais realismo nesse assunto. As domésticas só viraram profissão no governo Dilma.

De fato alguns aspectos técnicos do filme que impressionaram muita gente para mim são saturados: estética de câmera super 8 de novo para representar imagens dos anos 70? Tenha dó. O filme inclusive abusa um pouco desses recursos e a fotografia acaba por ser mais do mesmo. Há uma exceção: uma cena no trânsito carioca dos anos 70 que é quase boa no sentido de nós fazer sentir aquele clima da cidade, talvez uma das poucas exceções. Imagino que as dificuldades técnicas para filmar foram gigantes e deu um belo gostinho naquele momento, mas nada além disso, um gostinho.

O tempo do filme é parte de sua angústia. O diretor, letrado, talvez conheça as filosofias do tempo, Heidegger, Sartre, o existencialismo, que nos conscientizam sobre a finitude do tempo de nossas vidas para fazer coisas significativas com esse curto presente que logo se vai para o passado. O povo, porem, não tem tempo para a paciência do tempo. Deveria ter, deveria simplesmente parar e pensar; acho que parte do povo faz isso, vai fazendo suas paradas, mas a máquina geral segue trabalhando. Infelizmente poucas dessas paradas são para a poesia, a maioria pára em bobagens, cachaça, religião empobrecida e coachismo, quando não em violência.

O povo é responsável por si, sim; não sabe que não deveria permitir que os militares voltassem ao poder, hoje em dia eleitos? Não tem o mínimo de consciência histórica dos seus crimes de um período que não fazem nem meio século? Imagine pensar sobre a existencialidade do tempo. Porém, não o eximo, é responsabilidade desse mesmo povo, nossa, que tudo isso se repita e o fuzil volte à executar os pobres, muitas vezes pelas costas, muitas vezes crianças.

O filme as vezes me pareceu se alongar, parece que perde oportunidades de acabar. Na verdade acho que não quer acabar. Porque a presença dos mortos dos crimes dos militares, filhos da puta, está na ausência que se prolonga. Na verdade em geral qualquer presença/ausência dos que se foram é assim. As vezes Ainda estou aqui é “didático” até demais nas imagens, embora se pretenda sutil: os enterros simbólicos estão lá na cara do espectador, o dentinho de leite, o cachorro. Prenúncios de um funeral que não poderá ser realizado. A universalidade de Ainda estou aqui aparece sem precisar suplicar por empatia pois em qualquer classe social, religião ou espectro de ideologia política o ser humano quer o direito de velar seus mortos.

A frase título do filme é linda: ainda estou aqui. Pode ser uma frase de resistência política, pode ser de resiliência humana, pode ser uma frase espiritual. Durante os dias que antecederam a minha ida ao cinema eu pensava um pouco sobre a poética da frase. E o fato de ter sido pouco não quer dizer que não foi um intenso debate interno. É um enigma essa frase. O filme é sobre qual das dimensões que a sua frase-título suscita? Resistência política? Resiliência humana? Metafísica religiosa?

Possivelmente para cada ser humano em qualquer classe social, espectro político, religioso ou ideológico, o sentido existencial da frase vai ser diferente, e em muitos casos até banal, como para o operário da música Construção de Chico Buarque.

Para mim ele ficava o tempo todo martelando durante as duas horas de exibição dos crimes desumanos (sic) que os militares brasileiros cometeram em território nacional. Eu ficava o tempo todo esperando que o sentido dessa frase aparecesse, as vezes queria vê-lo explicitamente, as vezes esperava me contentar com um easter egg. Mas é na frase final mesmo do personagem Marcelo, do grande cara Marcelo, que a gente finalmente o compreende: “quando você percebeu que o pai não voltaria mais para casa?”

Enfim, é nessa frase do Marcelo Rubens Paiva que a gente acaba por ser derrubado, afinal eram crianças: quando você percebeu que o pai não voltaria pra casa?

Responda você, amigo leitor.

 

Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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