Em um artigo intitulado: “Senso comum + teoria fílmica = teoria fílmica do senso comum?” o filósofo David Bordwell estabelece “… a fábula como a sequência cronológica e causal
de eventos que podem ser apresentados pelo syuzhet, isto é, a configuração de eventos no texto narrativo tal como a vemos.“.

 

Os termos são muito frequentes ou até mesmo podem ter sido gerados pela corrente linguística tradicionalmente atribuída ao formalismo russo. Bordwell não chega a aprofundar a história dos termos no artigo, e para o propósito do presente texto ela não é essencial. Vejamos então, sumariamente como aplicar a diferenciação proposta pelo autor à narrativa filmográfica, que entendo como um amálgama indistinguível entre discursos, áudios e vídeos.

 

Partindo daquela distinção diríamos que a sinopse da obra em questão seria a fábula, geralmente publicada nesses termos: A história de Maria, uma jovem que se refugia em uma casa abandonada no sul do Chile depois de escapar de uma colônia alemã.

 

Talvez pudéssemos acrescentar que trata-se de uma moça sensível, castigada com 100 dias e 100 noites de isolamento por deixar fugir porquinhos, animais que ela amava, e com os quais resolveu construir uma vivência isolada na floresta, até finalmente ser resgatada em meio à grandes tormentos físicos e psicológicos.

 

A própria “questão” da colônia alemã, de inspiração nazista, também poderia ser mencionada e, principalmente, a cronologia de eventos que no filme é apresentada com idas e vidas, espécies de flashbacks (syuzhet aqui já em ação) da vida na colônia, das dificuldades e tendências de comportamento da protagonista, bem como da personalização dos porquinhos e do lobo/narrador. E aqui há uma linha tênue separando a cronologia de eventos (fábula) da forma como ela nos é apresentada (syuzhet), eventualmente, invertendo ou modificando a linha temporal.

 

 

O syuzhet, por outro lado, seria a forma como essa estória desenvolve-se, notadamente sua característica central: o stop motion de camadas de pinturas formando lugares, personagens e movimentos em 2D, acrescido, eventualmente, de elementos 3D.

 

 

A atmosfera de apreensão psicológica conecta-se perfeitamente à esse formato que mantém uma incessante ação do tempo: tudo está sempre se decompondo, como corpos orgânicos em processo de decomposição. A morte e o tempo manifestam-se nesse elementos produzindo um clima quase esquizofrênico para o desenvolvimento da protagonista.

 

 

Aproveito para manifestar minha admiração com a produção desse filme que levou 5 anos para ser concluído e de fato, creio, deve ter sido extremamente trabalhoso dadas as necessidades técnicas para realizá-lo.

 

 

 

O “detalhe” inicial do pseudo documentário apresentado também é um aspecto interessante do syuzhet pois é um formato que lida com “meias verdades” próximas da história real que inspira o filme. A projeção do narrador, figura de autoridade, em lobo, é outro aspecto prático da narrativa. Esse personagem dirige-se ao espectador e ao mesmo tempo é caracterizado pela protagonista Maria como um personagem mutante e opressor.

 

 

Há poucos momentos dignos do nome terror nesse filme, como por exemplo, quando um incêndio fere os porquinhos e eles se esvaem através dos próprios olhos, num negrume que escurece a tela. Os gemidos, os sussurros, dão ao filme uma espécie de ponto de escuta que potencializa essa apreensão da tortura psicológica. A tendência mais geral é de um clima de ansiedade, apreensão e daquilo que meu entendimento rudimentar de psicologia classifica como desintegração do sujeito: loucura. 

 

 

A título de mera divagação pensei no documentário O Homem Urso, de Herzog, cujo tema central é um homem que foge para natureza selvagem do Alasca para viver entre ursos e acaba devorado por eles. Não se trata de comparar ambos os filmes, apenas de pensar num paralelismo da psicologia dos protagonistas. Além disso, a sonoridade, o trombone que, por vezes, parecia tenebrosamente desafinado, me fez pensar em cenas de Cidade dos Sonhos, de David Lynch, notadamente aquelas do Clube Silêncio e do casal de velhinhos entrando e saindo do cubo. 

 

A humanização dos bichos lida, por vezes, suponho eu, com própria noção de corpos normais, normalizados ou deficientes. E esse discurso bem poderia ser resultante direto do discurso do filme, que por sinal é repleto de supostos easter’s eggs e metáforas visuais por vezes ininteligíveis. Talvez uma das exceções à essa ininteligibilidade seja a cena em que Maria presenteia seus porquinhos com o dom da voz e transforma-se num passarinho que entra pela boca deles. Interpretada dessa forma o pássaro, como bichinho que canta, seria engolido como a faculdade de falar.

 

A propósito de uma perspectiva ácida acerca do filme (que de fato possui metáforas – na falta de palavra melhor – por vezes enigmáticas) reproduzo a seguir trecho de uma crítica levemente mau-humorada mas, nem por isso, menos legítima, escrita por  FLÁVIO PIZZOL:

 

O roteiro possui uma linha narrativa que, se revela bastante poderosa por dar voz ao líder da seita e, com isso, criticar o uso do cinema como propaganda, porém a maior parte do tempo trabalha com um texto lúdico e completamente fora da caixinha. Aproveitando o aspecto fantasioso instaurado na proposta, os autores se permitiram viajar em um conto onde mel cura queimaduras, porcos transformam-se em crianças e lobos salvam seres humanos. Os acontecimentos não possuem um verdadeiro sentido de conexão entre si, apesar de possuir uma relação temática no final das contas.

 

Observem que o crítico atenta, evidentemente, para o desenvolvimento quase surreal do syuzhet, mas admite que o resultado do filme possui alguma coesão. De fato a “real” cronologia e desfecho (fábula) do filme ficam em aberto, sendo a tendência mais forte ou mesmo comum a de pensar no caso como um episódio psicótico resultante da insinuação nazista acerca da colônia. E digo psicótico sem qualquer julgamento moral pré-definido. Caso queiram ler crítica “destrutiva” de Pizzol na íntegra aqui está o link:

Crítica: La Casa Lobo

 

 

Este artigo está em construção, mas vou deixar aqui um link para quem quiser baixar e assistir ao maravilhoso filme de Cristóbal León e Joaquín Cociña.

 

Título original: La Casa Lobo
Título no Brasil: A Casa Lobo
Direção: Cristóbal León e Joaquín Cociña
Gênero: Animação | Drama | Terror
Ano de lançamento: 2018
País: Chile | Alemanha
Idioma: Espanhol e alemão
Duração: 74 minutos
Qualidade: WEB-DL (1080p)
Tamanho: 2,91 GB

Sinopse: A história de Maria, uma jovem que se refugia em uma casa abandonada no sul do Chile depois de escapar de uma colônia alemã.

 

Torrent + legenda: 

https://mega.nz/#F!NcNWTQ5Q!EaNMEmMDG2KirIY1VQuAWA

 

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Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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