Por Roberto Blatt

 

 

Não é preciso ser nenhum gênio da psicologia social para saber que existe um prazer voyeurístico na observação de ricos, famosos, até mesmo de pessoas comuns. E até mesmo de políticos. Observar os sofrimentos e prazeres alheios parece ser fonte de um certo gozo. Esse fenômeno é global. E, talvez se possa dizer, é quase atemporal. Faz parte da constituição humana essa curiosidade que diverte. 

 

 

Pois bem, o documentário “O Processo” (Brasil, 2018) de Maria Augusta Ramos tem entre suas características esse aspecto de uma “espiada”nos bastidores da arena mais poderosa da política nacional, o Senado Federal. Escrevo com maiúsculas não pela nobreza do cenário, mas pelo “Coliseu” ideológico que ele concentra.

 

 

Do ponto de vista da transparência rousseauniana, digamos assim, aquela segundo a qual um político não deve esconder o que pensa, o filme incomoda pela impossibilidade de ter um microfone nos “brothers”. Em certos momentos vendo esses pilantras cochichando – e aqui me refiro a todas as matrizes ideológicas – sentimos que eles nos escondem alguma coisa: cochicham alegremente, riem, escondendo-se até de uma leitura labial. A nossa curiosidade é grande, e parece que em tempos de micropolíticas esses cochichos agigantam-se. É ali que vamos descobrir a verdadeira face dos heróis ou vilões da política brasileira. Mas, infelizmente, não há microfones pendurados nos pescoços desses “funcionários públicos”. E segue o baile de intrigas.

 

 

O fato de não ouvirmos a conversa ao pé do ouvido é um problema e a diretora parece ironizar um pouco essa situação: não há voz off no documentário, é quase um filme mudo. O que se ouve então? Ouve-se aquilo que os políticos querem que a gente ouça: seus grandiosos discursos. Incomodou-me um pouco a ausência de bons momentos dos oradores golpistas. Você não vai ouvir Marta Suplicy, Cristóvão Buarque, Ronaldo Caiado, José Serra entre outros conspiradores, com aquela eloquência anti-petista, que na prática é anti-povo. Mesmo assim seria bom a autora nos deixar ouvi-los. Será que não empolgaram em nenhum momento?

 

 

Mas, apesar de “errada”, essa tática é também um acerto, porque os golpistas cochicham e tramam, preferencialmente. E não temos acesso aos seus bastidores, às reuniões que fecham os conchavos e tramoias. Não vemos isso. Jamais teríamos acesso a nada desses cochichos se o áudio de Romero Jucá não tivesse vazado. É prototípico o exemplo: no grande discurso de tribuna esse senador falava da sua preocupação com o número de desempregados em 2016 que, segundo ele, chegava a 11 milhões – hoje, passados 2 anos, temos 14 milhões. Na boca pequena, no pequeno discurso, ele cochichava com ministros do STF (com o Supremo com tudo), um esquema para entregar os anéis e manter os dedos, ou seja, para evitar o próprio desemprego.

 

 

O documentário acompanha muito a solidão da Senadora Gleisi Hoffman, e isso chega a parecer despropositado. Mas acabamos relevando por uma razão muito simples: Gleisi está numa batalha de Davi vs Golias, acrescido do fato de que suas bordoadas no Golias (eu queria chamar de Golpias hauhauha) não tem ressonância midiática nenhuma. Além disso, existe um diferencial em acompanhar a esquerda: em alguns momentos temos o privilégio de ver seus cochichos que inclusive pegam mal, digamos assim. 

 

 

Por exemplo, há um momento [SPOILER] em que o Senador Lindbergh discute com a “senadora biônica” Janaina Paschoal sobre seu idealismo de 45 mil reais. Gleisi cochicha e finalmente fazemos leitura labial: “destruiu ela“. Nessa pequena frase a Senadora do PT, em quem eu voto, diga-se de passagem, entregou sua dose de mesquinharia. Mas ao mesmo tempo humanizou-se: ela também odeia, ela também fala pelas costas, algo assim. É uma mesquinharia daquelas que criam em nós identificação com personagem de novela.

 

 

Além disso a Senadora quase joga a toalha ao admitir que Dilma não tem condições de voltar a governar o país por conta da chantagem do Congresso. E isso nos leva a pensar, para além da derrota humanizadora de Gleisi, sobre o faz de conta que é eleger um Presidente da República, visto que ele pode não governar.

 

 

http://www.tribunadoagreste.com.br/2018/04/moro-tem-obsessao-odio-e-rancor-a-lula-diz-gleisi-hoffmann/

 

 

Claro, portanto, que há uma opção pela esquerda no documentário, mas isso não é inteiramente negativo, porque em parte a documentarista nos entrega o cenário oculto, o cansaço, a frustração, a percepção de estratégias dos derrotados. Fátima Bezerra questiona a tática de recursos nas comissões sofrendo sucessivas derrotas. Ela estava preocupada com a mensagem negativa que isso possa transmitir às pessoas. Pensem só como estão as coisas: eles estão derrotados de antemão (é como o julgamento de Moro, se abriu o processo tá condenado) no Senado, um jogo de cartas marcadas, mas não querem que uma imagem de derrota esmoreça ainda mais a resistência anti-Golpe. Gleisi é transparente novamente: temos que ganhar tempo, diz ela. Finalmente alguém revela uma manobra. As jogadas da direita são mais amplas, camufladas, e incluem atores externos como a rede Globo e mesmo reuniões secretas com o STF. Não temos acesso à esses bastidores.

 

 

Ainda assim, repito, o documentário poderia ter escavado fundo para achar um bom discurso golpista. Ou então deixemos isso para a direita. E a direita efetivamente não precisa de uma narrativa dessas, pois tem a mídia e o senso comum, a direita tem até a Netflix. O discurso de Janaina Paschoal, essa figura excêntrica, parece uma reprodução das redes do sociais, extraído diretamente das sessões de comentários dos leitores. Um twitter de um bolsomion parece ter sido o roteiro da acusação. O fato é que não há bons discursos golpistas no filme, e isso soa um pouco como se a direita não tivesse voz. Talvez a única exceção seja a desconhecida senadora Simone Tebet, do Mato Grosso do Sul (ô terrinha, hein) que é de uma dessas oligarquias políticas hereditárias.

 

 

https://br.blastingnews.com/politica/2017/06/janaina-paschoal-volta-a-ser-piada-nas-redes-sociais-001795043.html

 

[SPOILERS] Tebet faz o discurso de direita mais incisivo do filme: acusa Dilma de fraude sistemática para maquiar a crise fiscal brasileira. Tive a impressão de que Dilma destruiu esse discurso falando simplesmente quatro coisas que a senadora não sabia (talvez porque ela resida nos confins do Mato Grosso do Sul e daí fica difícil acompanhar o que acontece no mundo): 1- bolha imobiliária em 2008, 2-crise do euro e 3- maior crise energética dos últimos anos, a consequência foi a 4- explosão do câmbio. Esse era o cenário mundial e três decretos complementares da Presidenta não tem exatamente muita influência numa crise dessas proporções. Não ouvi réplica, mas o voto da senadora foi pela cassação. 

 

 

Passado todo esse tempo algumas coisas soam poderosas: por exemplo a dor de Dilma ao falar sobre mais essa desventura de sua vida; a aparição relâmpago de Aécio Neves, que hoje sabemos tratar-se de um crápula corrupto da pior espécie; algumas passagens em que o relator do Golpeachment é chamado de pedaleiro; Janaina Paschoal num faz de conta sobre o aborto e sua última desastrosa declaração ao pedir desculpas à Dilma e dizer que fez o que fez pensando nos seus netos. A cena é tão asquerosa quanto a votação na Câmara de Deputados. As aparições de Lula também possuem um impacto profético incrível.

 

 

 

BRA101. BRASILIA (BRASIL), 31/08/2016.- EFE/FERNANDO BIZERRA JR

 

 

 

Por fim temos Gilberto Carvalho propondo uma autocrítica aos petistas. A noção de “representação”, de “ator político” precisa ser repensada. Carvalho revela como era uma missão árdua fazer um ministro de um governo eleito pelos movimentos sociais receber uma comitiva dos movimentos sociais… mas, enfim, isso é problema exclusiva da esquerda, justamente porque ela leva a sério a ideia de representar outrem. Aécio, Temer, Anastásia, Caiado, eles representam a si mesmos. Ainda assim seria interessante que o eleitor tivesse acesso à essas vidas privadas, onde as coisas são decididas.

 

 

 

Apesar de que aqui no Paraná, por exemplo, os políticos invertem as noções de público em privado. A bancada do governo Beto Richa recebia 100 mil reais de propinas em casa. Na casa do povo, melhor dizendo, no gabinete da Presidência da Assembléia. Tudo em casa. Você não defende a instalação de câmeras?

 

 

É um documentário com valor histórico inegável. Pode-se discordar da posição política, mas não há como negar a montagem e a retórica narrativa bem sucedida da obra. O filme fala com imagens. 

 

 

Nota 9,0/10

 

 

 

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Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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