Atlanta (EUA, 2016) é uma série criada pelo Donald Glover (Community) e que pode ser encarada como uma comédia light. Definir completamente o gênero dessa obra é quase um paradoxo: cheguei a pensar em “comédia realista”, porém não estou seguro da classificação, ainda a que esta última me pareça mais próxima de uma definição coerente. O rótulo não importa tanto, pode servir apenas para orientar o espectador sobre o que esperar da série, eventualmente.
Essas notas serão breves, pelo menos essa é a intenção. Aliás, boa parte do intento geral desse blog é servir como um bloco de notas das coisas que assisto e das impressões que me despertam. Não tenho assistido filmes ultimamente. Estou me sentido naquela espécie de intoxicação pelo excesso de imagens, para a qual nos alerta a brilhante cineasta argentina Lucrécia Martel.
Diante dessa fase de “intoxicação” desperdiço meu ócio atualmente com algumas séries. Mas esse formato tem lá suas dificuldades. A primeira delas é a própria escolha em função do bombardeio de ofertas de qualquer serviço de streaming realiza com seus “consumidores”. Talvez o MUBI seja valiosa exceção porque ele oferece uma curadoria bem determinada, um pacote fechado filmes para o mês. A segunda dificuldade diz respeito a qualidade da escolha, e vocês sabem que a Netflix trabalha numa lógica de quantidade. Diria que 90% do catálogo é bobagem. Por fim há uma terceira dificuldade que é dupla: encontrar algo que nos interesse e que valha a pena acompanhar por longas temporadas.
Não raras vezes o marketing em torno de uma série me desestimula para assisti-la. Por exemplo a aclamada Westerwold, nunca consegui chegar perto de ver porque há todo um estereótipo na minha cabeça sobre a série que a associa há alguma complexidade de argumentos e retórica, o que dá no mesmo, acerca da realidade. Sua roupagem filosófica me faz vê-la como pretensiosa, e assim não assisto. Algo parecido me acomete com filmes do Nolan, do Aronofski e até é gente mais velha como Woody Allen, David Lynch e o próprio Lars von Trier.
Enfim, quando fui observar Atlanta eu estava altamente desconfiado que não engoliria direito o papo cabeça chato do Donald Glover a respeito da suas reflexões existenciais. É interessante o contexto dessa precaução porque Glover fazia Community, essa sim uma comédia light, e saiu da série para criar sua própria obra, aparentemente exigindo total liberdade de criação para o seu próprio projeto.
Em todo caso eu pensava … “ lá vem uma enxurrada de situações racistas que a série deve querer denúnciar”. É essencial denunciar o racismo, penso eu, evidentemente. Mas a exploração da temática numa saturação exagerada tem o efeito contrário: no lugar de denunciar algumas obras fazem o espectador acostumar-se comodamente com esse tipo de coisa, entre outras, como classismo, machismo, homofobia e até neurotipicidade.
E é aqui que a série de Glover é aristotélica na medida certa: a dosagem de racismo que denuncia. Sua eficácia persuasiva está justamente na sutileza com que as situações de marginalização aparecem. Ressalto que estou me referindo apenas a primeira temporada que vi na Netflix, a única que vi; por enquanto.
Atlanta ganha qualquer um que for capaz de persistir alguns capítulos. Já se nota portanto que ela não é uma série de obviedades clichês e exige essa persistência (uma das dificuldades de engatar séries que apontei acima). Brinca um pouquinho no abismo dos estereótipos de comédia clichês com alguns persagens, o próprio Earn, protagonista quase desaba nessa tendência, mas equilibra-se bem.
O clima seguro me faz pensar em Community, embora sejam séries completamente diferentes. Ainda assim, mesmo que Atlanta seja uma série sobre negros e um estudante universitário fracassado, vivendo em ambientes “próprios”, ambientes estes que são ridicularizados em muitas ocasiões, há um clima de happy end no ar, ao menos na primeira temporada. Nesse sentido ela não imita bem a vida, onde as coisas sempre podem dar muito errado no final, infelizmente. Mas nada grave.
Faço uma ultima menção ao elenco com excelentes atores: além do ótimo protagonista, Glover, que parece interpretar a si mesmo com um sem teto, há excelentes “coadjuvantes” como Lakeith Stanfield (do excelente terror Get Out) e Brian Tyree Henry, que faz um rapper no rastro da cultura de Tupac e Big, mas que não combina exatamente com a violência que se espera desses anti-heróis do pop.
É isso. Algumas séries a gente é obrigado a ver, porque elas representam tendências do mundo real. É o caso de The Handmaids Tale, The Night Off, MindHunter, e obrigatoriamente Atlanta.
Nota 9,0
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