Terminei de ver de madrugada “Uma Noite em Miami” (EUA, 2020), e gostei, muito bom filme. Digo considerando o conjunto de coisas ruins que vem do cinema comercial estadunidense, mas não apenas por isso. Trata-se de uma biografia hollywoodiana clássica, com direito àquele “ritmo de feedback” dos anos 50, na abertura, quase clichê. Quase, porque tem pelo menos uns três momentos épicos e memoráveis.

O primeiro está na própria abertura, que vou apelidar aqui de quadro didático: a cena joga o espectador numa sutil reflexão sobre o racismo, e isso é feito de modo a quase incitar quem está assistindo a adentrar aquele espaço, literalmente. Os termos do filme, seu “contrato de adesão estético-moral” ou ideológico estão colocados ali naquela cena. Me refiro à conversa de Jim Brown na “casa grande”. É a chave do filme. A tensão é sutilmente explorada de forma quase aristotélica, numa “medida” bastante mínima e, ao mesmo tempo, mais do que suficiente. Ponto para Regina King, que me pareceu genial como diretora estreante, ainda que a escolha de “imaginar/idealizar” aqueles personagens soe um tanto idílica se considerarmos as pessoas reais que o compõem, notadamente aspectos violentos de suas biografias. Opção a ser criticada, uma espécie de condescendência inclusive com uma versão talvez muito pacífica de Malcolm X.

Um carro se aproximando de uma grande mansão entre árvores

O segundo ponto que destaco é o que vou de chamar dramaturgia ou a teatralidade dos diálogos que seguem – me faz pensar em Fences (EUA, 2017), por exemplo, e também no lindo e classudo Se a Rua Beale Falasse (EUA, 2018), e evidentemente ninguém que vá ver um filme tem obrigação de saber que é baseado numa peça de teatro. Mas não se trata apenas dos diálogos e sim do ritmo do filme. Em Hollywood muita coisa segue velocidades histriônicas, quase como uma alucinação que aumenta gradualmente, alucinação para “viciados”, com o perdão de qualquer carga negativa do termo, que não é minha intenção aqui. Uma Noite em Miami tem a coragem da sobriedade nesse “segundo ato”, uma quebra da expectativa criada a partir das cenas da luta de Ali, do “fiasco” de Sam Cooke, da “casa grande” com Jim Brown e das imagens de Malcolm X .

Três homens negros ouvindo Malcolm X

O terceiro ponto a ser ressaltado, na minha opinião, tem duas partes, talvez intrincadas: primeiro são os “números musicais” da obra, digo entre aspas mesmo, porque são cenas mas muito bem encaixadas na trama e lindamente encenadas (alguns dos mais lindos trechos musicais dos últimos anos, incluso toda a década passada, na minha opinião).

Público de um show com pessoas negras ouvindo o cantor Sam Cooke

… e segundo a própria mensagem da luta de Malcolm X. O debate com o personagem de Sam Cooke é extremamente atual e parece prever temas que vão desde a ostentação, ou uma espécie de alienação em relação à militância da causa negra até o impressionante alerta acerca da longa lista de líderes pretos assassinados.

Malcolm X segurando um rifle para proteger sua mulher e filhos

Um filme digno, bem dirigido, bem atuado, direção de arte muito boa… E é de se pensar há quanto tempo A change is gonna come… ?

 

 

Caso queira ouvir, eis aí a excelente trilha do filme.

 

Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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