Essa semana fiz um post no Reddit lamentando o cancelamento da série Raised by Wolves, ocorrido há 3 anos. Pensando bem, toda distopia no cinema é um problema sem solução. Essa é uma “tese” que tenho: não dá para resolver distopias humanas na ficção — para o bem e para o mal — por conta da imprevisibilidade do curso da história humana, o que faz da vida uma partida de futebol: pode acabar em tragédia ou num belo jogo; não sabemos.
Mas muitas séries a gente vai tolerando, mesmo sabendo que não têm solução, tipo Ruptura (Apple TV), que inclusive já me cansou e larguei, ou The Handmaid’s Tale, que, de tão deterministicamente horrível, abandonei depois da 1ª temporada. Também não sou fã de coisas como Mad Max e afins, fundamentalmente porque parece que, nas distopias, há sempre um fim pré-determinado — que, inclusive, pode ser mal construído.
Raised by Wolves é uma distopia? Sim, mas, num certo sentido, é um momento pós-apocalíptico e até pré, inclusive com nova ascensão religiosa como causa do conflito. A série trata de um futuro em que a polarização vigente é entre ateus e crentes, com consequências catastróficas bastante verossímeis, dado o próprio arsenal de armas nucleares potencializadas pelo aceleradíssimo desenvolvimento tecnológico (IAs, etc.).
Fonte: https://raised-by-wolves.fandom.com/wiki/Kepler-22b?file=RBW-Promo-S01-Still11.jpg
Vou abrir o jogo logo: acho que essa série foi cancelada por razões ideológicas. Não era um fracasso de audiência, teve uma boa recepção e era produzida por gente de renome hollywoodiano; o problema é que possuía uma perspectiva sobre religião e negacionismo que é sui generis, sem igual na ficção e no cinema. (Se você souber de algum filme ou série que possua o argumento que vou expor a seguir — da religião como arqueo-tecnologia de poder — por favor, cite nos comentários).
E essa perspectiva não era boa para os creacionistas americanos e seu público imbecilizado. Posso estar exagerando, mas, ao postar no Reddit, acabei lembrando que já tinha escrito um texto no blog sobre a série, no qual a elogiava muito, embora talvez não tenha explicitado o argumento central do “show”:
https://filmecoss.com/raised-by-wolves/
O post no Reddit foi este aqui, e foi relativamente bem-sucedido:
E a matéria da revista Veja foi esta:
É a partir dessa matéria que tento complementar o que já havia escrito sobre a série, de forma sempre meio desorganizada, mas faço o que posso. E, nesse post do Reddit, avancei um pouco mais no argumento que me parece o mais importante da série:
“Um bom texto sobre a série (o artigo da revista), apesar de estar no lixo estrume que é a revista Veja. O texto, a exemplo de boa parte dos isentões espiritualistas em matéria de religião, tenta argumentar que Raised by Wolves ataca os dois lados: ateus e religiosos. Mas essa é uma interpretação fraca e errada da história, por uma razão básica: no enredo da série, a humanidade entrou em guerra com dois grupos — sim, ateus e crentes — mas são estes últimos que provocam a guerra, a perseguição e a destruição.
Claro que, numa guerra, a reação do outro lado não é boazinha; obviamente defendo que lutar contra fundamentalistas exige que se mantenham os princípios; senão, realmente, você mesmo vira um fanático de igual monta. Nisso, de fato, há abusos, que a série aponta. Mas querem ganhar a guerra, com vistas a um mundo sem perseguições religiosas. Os fins não justificam os meios; entretanto, contra o fanatismo pode não existir alternativa. Além disso, a abordagem arqueo-tecnológica da religião é a mais singular que já vi no audiovisual, seja em séries ou filmes e amplamente provocativa para as narrativas fundamentalistas.
Pense assim: as pirâmides do Egito são artefatos tecnológicos (sagrados) para aquelas religiões egípcias, visando PODER — a exemplo de outros mecanismos e artefatos supostamente sagrados de outras religiões, notadamente os monoteísmos.
All Giza Pyramids
O que Raised by Wolves fez (spoiler) ou propôs é uma civilização (ou planeta) cujos artefatos tecnológicos, a serviço da religião (que é uma invenção humana ou essencialmente artificial e essa é parte importante do argumento), chegaram a tal ponto de simular o sobrenatural como forma de persuasão — simulação virtual altamente sofisticada. Somado à isso temos o olhar do colono humano, nesse planeta, que interpreta as “aparições” com o reforço de seus vieses supersticiosos que ele carrega dado o próprio inconsciente bíblico. Observe que de vez em quando a série sugere símbolos explicitamente religiosos: arca, deus sol, árvore do conhecimento, Adão e Eva, Serpente, etc.
Imagine um simulador de avião e a sensação que ele produz. Agora visualize um parque gigante — um planeta inteiro — de simulação arqueológica e religiosa. Esse é o planeta Kepler-22b, um novo Éden, se as “ordens” forem seguidas. Excelente e único argumento.
Essa abordagem da série sobre a religião como uma arqueo-tecnologia é ateia e, sobretudo realista, porque técnica. E a série faz tudo isso mixando uma estética da ficção científica dos anos 60, ao estilo de Planeta dos Macacos, com um “elã” Blade Runner atualizado.”