Por Roberto Blatt

O não-dito

Assisti hoje ao filme de Heloísa Passos “Construindo Pontes” (Brasil, 2017) que é um exercício de linguagem narrativa bastante livre. Confesso que me desapontei um pouco com o conteúdo dos debates de que o filme faz uso: pai e filha discutem a partir de pontos de vista ideológicos aparentemente conflitantes, principalmente, nas questões políticas. Os argumentos que vemos, entretanto, são rasos, simplórios e ditados por uma “lógica” da emoção familiar, daquilo que a própria cineasta classifica como família: “família é o não-dito“. Nem toda discussão familiar seguirá esse padrão, mas as que são mostradas no filme tem certa superficialidade na explicitação de argumentos consistentes, digamos assim, de ambos os lados.

 

A família brasileira

O lendário almoço de domingo da classe média brasileira é insinuado. Mas esperamos por uma polêmica arraigada que não vem, esperamos por um debate consistente que não vem, esperamos por bons argumentos em choque e eles também não aparecem. Esses são alguns dos aspectos mais negativos do filme.

 

Talvez a explicação para essa ausência de conteúdo esteja na própria origem dos protagonistas: na classe média ou na pequena-burguesia, para usar uma expressão marxista, não se faz um debate que vá além de rótulos vazios, até porque família não é universidade. Álvaro por exemplo repete com frequência a ideia de que os militares possuíam um “projeto de Brasil”, que foram os únicos a ter efetivamente um projeto. Mas não diz muito sobre o que significa esse chavão. Heloísa contesta pouco o pai, menos do que se esperaria para um leitmotiv que instigasse a curiosidade. O contraste entre os dois talvez esteja mais nos detalhes de pequenas mágoas, pequenos desafetos que constituem o ecossistema familiar em geral e suas respectivas impaciências.

 

Arte e Sociologia

Mas talvez a explicação para essa inconsistência de conteúdo seja outra, menos sociológica e mais artístico-narrativa. No cinema clássico narrativo, principalmente o hollywoodiano, não raras vezes os personagens trilham duas linhas causais paralelas: uma pessoal e outra política; por exemplo, o xerife do velho oeste que luta, ao mesmo tempo, pela amor da mocinha e para livrar a cidade dos bandidos. O famigerado final feliz contempla no beijo hétero a realização de ambas as metas. Nesse sentido o documentário de Heloísa Passos tem um aspecto próximo do tradicional: resolver uma relação pessoal ao mesmo tempo que reflete um contexto político mais geral. É uma perspectiva edificante.

 

E aqui cabe novamente um pequeno parênteses sociológico, porque o hábito de resolver os rumos do país dentro da lógica doméstica, entre as quatros paredes do patriarcado, é herança da Casa-Grande. Essa ausência de objetividade que caracteriza a lógica de interesses, porém, acaba por configurar-se naquilo que o filme tem de mais bonito. Dito de outro modo, esse jeitinho brasileiro, é sublimado num documentário subjetivista, cujo maior mérito reside justamente nessa meta quase rousseauniana (olha a sociologia aí de novo misturando-se com a arte) da transparência e da sinceridade. É um big brother poético onde a câmera pretende mostrar algo mais do que encenação. 

 

Roda d´água de moer gente

A honestidade do filme, em termos de manipulação, está justamente no fato de que ele constrói narrativas visuais clássicas antes de revelar que isso faz parte do métier cinematográfico. O mais poderoso desses exemplos está numa espécie de efeito Kuleshov curiosamente misto: em determinado momento do filme fala-se sobre as atrocidades da ditadura e logo em seguida vemos a colossal e estrondosa vazante de água de Itaipu; é como se pudéssemos imaginar corpos se despedaçando, microscópicos, na potência gigantesca da água. É o Estado dinamitando o que está no seu caminho para alcançar seus objetivos. 

 

Do it yourself ou faça a sua comissão da verdade caseira

Todo filme conta uma história. Defina a história que você quer contar” diz Álvaro em determinado momento, ao que Heloísa responde que ela não quer impôr um roteiro e nem mesmo uma narrativa. Ela quer a história possível com o mínimo de manipulação, ou seja, a relevância desse documentário está nessa mensagem simples: contemos histórias sem trapaças. É a contestação do maior dogma político atual segundo o qual o importante é a narrativa, o marketing. Num mundo de fake news, de manipulação da opinião pública, essa mensagem simples é importante. 

 

Ao revelar um pouco da suas possibilidades narrativas o filme me fez pensar nos documentários de Win Wenders, principalmente O Homem Urso, onde o ponto de vista é claramente demonstrado e uma espécie de meta-narrativa é insinuada. Construindo Pontes vai além de meramente insinuar essa meta-narrativa: o filme dá uma pequena aula de documentarismo, de possibilidades de narrativa, e com isso coloca o desafio para qualquer um, de um ponto de vista particular para o universal: como você filmaria a sua relação com seu pai?

 

Responder à essa pergunta é contar uma história e contar uma história é resolver um conflito, ainda que de modo aberto ou suspenso. Ao seu modo o filme propõe para a esfera doméstica, individual, aquilo que vimos ser um impossibilidade da nossa covardia e da nossa barbárie social: faça a sua própria comissão da verdade. Nada mais pós-moderno, e ao mesmo tempo frágil.

 

Nota: 8,0/10

 

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Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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