Que espetacular esse filme, que aula de renovação cinematográfica! No dizer do Thomas Elsaesser, isso é pura arqueologia das mídias, mas vai além: é oxigenação artística da perspectiva histórica que tanto importava a Nietzsche. A capacidade de pensar historicamente. A modernidade é coisa antiga. A repressão social, burra, é que turva essa evolução e essa memória, nos fazendo sempre pensar que temos que começar tudo novamente nos costumes e na cultura e na moda.
Admito criticamente que em alguns momentos desse filme ocorre uma dissociação audiovisual, ele não é perfeito, e nós percebemos a música forçada, ditando a a cena de forma apelativa, aquele cravo de Bach, mais ou menos como nos momentos de suspense dos filmes de Spike Lee onde a trilha sonora é um elemento à parte. Mas há outros em que ele chega nessa perfeição de um amálgama entre som e imagem (audiovisão, no dizer de Chion – ver P.s.3: abaixo), quando você parece não perceber que som e imagem são coisas diferentes, e sim iguais, numa espécie de dimensão própria. Esse filme tem pelo menos um desses momentos, com a viola não simplesmente compondo a mise en scéne, mas integrando-a, transcendendo-a por dentro.
A música de Elton John (ver P.s.1 e 2 abaixo) é um bônus espetacular, um “kitsch arqueológico” perfeito na poesia e na sonoridade, um kitsch que salta 300 anos para o passado: ela representa alguma coisa entre o brega, o cafona e a melancolia da realeza empoeirada, e por fim o romantismo, a perda. Essa perda é romântica, da pessoa amada, mas é também de uma estrutura social que vai se desintegrar, que está podre. Que interpretação magnífica das atrizes, a começar por Olivia Colman, que trabalho magnífico dessa mulher. Para ser justo esse ano o Oscar deveria entregar o prêmio de melhor ator para Colman, melhor atriz para Rachel Weisz e melhor “coadjuvante” para Emma Stone. Divirta-se aí com as pequenas transgressões de gênero do meu senso de justiça.
O filme tem hipnose, ele nos clareia a mente, nos alerta, nos conscientiza. É um filme com essa capacidade de focar, de organizar o pensamento (seja lá o que isso for, substância material ou espiritual, como diria algum platonista) e digo isso pensando na loucura. A loucura, que aliás é retratada no filme como resultado do excesso, do privilégio excessivo. Quantas seres humanos imbecilizados pelo privilégio conhecemos hoje em dia? Quantos playboys cretinos fazem parte das castas sociais desse mundo não natural? A loucura é como uma falta de organização mental, como uma desintegração espiritual. O poder absolutista gerou os reis loucos. E o filme nos mostra uma rainha louca. Uma rainha lésbica que não pode ser lésbica.
O fato de terem existido e ainda existirem prototipicamente reis, me desperta os instintos iluministas mais primários: cortar as cabeças dos monarcas do mundo. Uma mulher doente, a rainha, convoca e dissolve uma Assembléia conforme sua febre determina. Isso é loucura. Ainda que homens tenham sido filmados nesse personagem um milhão de vezes e com mais aceitação a situação é pre-escatológica, pré-caos. A monarquia é a modernização para alguns e o atraso para muitos. Tal qual o capitalismo, embora esse sistema social tenha ampliado a base de modernizados/livres. Fico admirado que os ingleses mantenham o bibelô até hoje. O que terá pensado a atual rainha da Inglaterra? “– Esse grego filmando uma ancestral minha lésbica? Que blasfêmia!“
Nota 9.5/10,0
P.s.1: Um texto interessante sobre a música de Elton John está no link abaixo. Aconselho a ler apenas depois de ver o filme.
A FAVORITA: qual a relação da música “Skyline Pigeon”, de Elton John, com o filme?
P.s.2: E a música maravilhosa, pra você ouvir:
P.s.3: para entender o que quero dizer com esse amálgama audiovisual, eu cito a cena abaixo do filme Homem-Aranha no Aranhaverso. Quero dizer que cada vez que escuto essa música Sunflower eu lembro do rosto lindamente desenhado do Miles Morales, e quando vejo seu desenho meu cérebro toca a música. Ainda não é suficiente para explicar, mas é um exemplo.
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