Resumir “Filme Particular” como um exemplar da “cultura da checagem” pode ser um começo estranho para se elucubrar sobre a obra da jovem diretora Janaína Nagata Otoch. A atitude de “checar”, didática, de buscar informações sobre alguma notícia para atestar sobre a falsidade ou veracidade do que é dito, tornou-se quase um nicho do jornalismo comercial, não sem levantar suspeitas sobre os próprios fornecedores do “serviço” ao considerá-los também como agentes interessados numa demanda financeira, integrantes desse quadro labiríntico que constitui a indústria jornalística.
Digo que esse é um labirinto palimpséstico ainda mais “obscurecido” pelo momento de “pós-verdade” que vivemos, de fake news e de um ceticismo amplo, ainda que rudimentar, bastante apreendido por vastas camadas da população como ferramenta de crítica política, ou seja, como ferramenta política especificamente falando e cujos aspectos transmigram por entre os espectros de esquerda e direita, para ficar no binômio mais simples da definição das forças sociais atuantes.
Dado esse contexto, notadamente uma espécie de desalento com a “verdade” que está presente na nossa época – e que talvez devesse estar ainda mais disseminada como antídoto ao dogmatismo e ao fundamentalismo – “Filme Particular” tem algumas virtudes: do ponto de vista formal é quase uma “videotecagem” que mescla o “pitch” das imagens, o fast foward/rewind com a investigação no ambiente de internet e suas garras de controle e de esclarecimento (seria a mesma coisa?). Além disso a musicalidade da obra é um elemento sensacional para criar a tensão que nos leva à espécie de expectativa pessimista que o filme parece querer entregar de bandeja ao espectador.
“Filme Particular” revelou, para mim, suas intenções muito explicitamente já na primeira parte da obra, onde devia aparecer um filme gravado nos anos 60 e que mostra o que seria uma família fazendo turismo na África do Sul. Digo que revelou “para mim”, porque outras pessoas poderiam, talvez, interpretar de outra maneira aqueles minutos iniciais talvez até de forma não tão pessimista quanto pareceu aos meus olhos. Duvido que alguém, ao ver aquelas primeiras cenas, de trabalhadoras africanas que parecem desterradas em sua própria terra, não vá sentir um pouco desse desalento. Mas, isso bem pode ser resultado do meu olhar que já está conformado com uma história da África colônia.
Filme Particular fará uma denúncia de uma imagem, de uma filmagem inocente, e aqui entra em cena essa desconfiança típica ou nem tanto de nossa época: imagens escondem coisas que podem comprometer as intenções. O clima de denúncia de Filme Particular é evidente e talvez seja essa a sua primeira camada palimpséstica. Mas em tempos de tecnologia visual deepfake e de uma retomada revisionista conservadora e violenta da História o “documentário” chega num resultado bastante impactante e sua conclusão é quase o que se costuma entender como um plot twist de aterradores detalhes históricos.
Coloco “documentário” entre aspas porque a incerteza quanto às suas “premissas” bem poderia produzir esse tipo de questionamento, legítimo, apesar das muitas conspirações terraplanistas que difundem-se tão estupidamente hoje em dia, ou talvez tão humanamente, como desejo de ficcionalizar o “real”. Explico: a sinopse de “Filme Particular” é a seguinte:
A diretora comprou um rolo de filme pela internet sem conhecimento sobre seu conteúdo, para testar o seu projetor, mas ao assistir o filme a realizadora inicia uma investigação com a intenção de descobrir segredos daquela filmagem: sua origem, contexto, intenções.
Pensando bem, essa sinopse tem tudo para ser um “Mocumentário”, não é mesmo? Se por um lado é ingenuidade acreditar na sinopse oferecida pela diretora, por outro as imagens mostradas nos convencem da sua originalidade. Esse convencimento é uma imposição das imagens: não duvidamos, dada a qualidade, que elas sejam forjadas, o que talvez exigisse uma tecnologia que a aparente modéstia do projeto faz questão insinuar como inacessível. Mas eis que nos recordamos que o cinema é prestidigitador e novamente desabamos na dúvida: será uma montagem? A hipótese que estou sugerindo é que parte das imagens é “deepfake”, produzida com excelente tecnologia e mixada à trechos históricos reais. Claro que isso é apenas uma hipótese provocativa. Assista e responda você mesmo.
Antes de finalizar esse texto devo dizer que Filme Particular também dialoga de forma muito interessante com o filme de abertura do Festival Olhar de Cinema de 2022, a correspondência fílmica de Vai e Vem (Brasil, 2022) de Fernanda Pessoa e Chica Barbosa. Enquanto Filme Particular estabelece uma espécie de objetividade quase casual, ainda que deliberada e intencional, Vai e Vem é a exposição de uma subjetividade igualmente espontânea. Ambos os filmes fazem jus a linguagem audiovisual como fluxo de uma mixagem emotiva. As potências e limitações das duas obras residem nessa dança de objetividade e subjetividade, que são, talvez, as questões do documentário como arte e não mais como arte-retrato.
OLHAR DE CINEMA é um dos mais importantes festivais de cinema do Brasil e do mundo.
Acontece de 01 a 09 de junho.
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