Roberto Blatt
PASSADO algum tempo da Season Finale de Better Call Saul vou comentar brevemente. A minha tese é simples: final ruim, fraco e principalmente inconsistente com o caráter do protagonista. A tese é baseada num único argumento, vocês verão, que é igualmente simplório.
Dito isso tem ALERTA SPOILER e se não viu ainda páre e vá ver primeiro.
Partirei de dois pressupostos (sei que pode parecer chato ler isso escrito dessa forma, mas tô numa vibe levemente analítica aqui no teclado):
1-) Better Call Saul é melhor que Breaking Bad.
Discutível? Claro, como tudo nessa vida; mas por várias temporadas, Jimmy e Kim e Howard e Chuck fizeram Breaking Bad parecer um tiroteio da “sessão da tarde”;
2-) O caráter de Jimmy não faz sentido com o final.
Pronto, é isso. Na verdade o ponto principal é o dois. O 1 é apenas um enfeite hauhauha!
O final de BCS foi razoavelmente discutido na internet, e tive a sensação – baseada em radares da minha cabeça – de que foi menos impactante que o final da original, Breaking Bad! Olhando em retrospecto o episódio que define o destino do professor Walter White não é tão bom quanto pareceu à época. Mas ainda assim conserva um sentido de “realismo” do destino do personagem. Quem acha/acredita que uma porra de uma metralhadora como aquela resolveria aquela situação já está completamente hipnotizado pelo personagem.
Tem outro problema: séries boas constroem bem seus personagens e relações. A “briguinha” entre Jesse e White que serve como pretexto para a “salvação” do aluno é um pouco forçada, parece ter sido inserida como uma forma de “enganar” os vilões, mas que foi pouco trabalhada ao longo da série. Enfim, é um final feliz, por incrível que pareça, ao contrário de BCS cujo fim é agridoce mas na dose errada de tempero usada pelos roteiristas.
Better Call Saul tem a mesma foto-filmo-grafia, o mesmo estilo, porém, trabalha muito melhor o desenvolvimento de personagens. É tão melhor que tentou até mesmo jogar um pouco de sua lucidez sobre os personagens da série mãe, sem muito sucesso, a meu ver, embora as “aparições” tenham sido bem-vindas.
Better Call Saul tem uma temporada inteira em que Kim é a protagonista. Baseado em quê afirmo isso? Novamente, micro-radares instalados no meu crânio. Foi bonito e não apenas militante, porque coube bem esse protagonismo e isso parecia um projeto focado no desenvolvimento da personagem. Chuck e Howard estão impecáveis e caricatos, com alguns dos melhores episódios de todo o universo, incluso a “série-mãe” (the winner take in all define Chuck)
A cena da morte de Howard foi uma das melhores da história de séries desde o episódio piloto de Lost. Reanimou uma temporada que estava ficando abaixo da expectativa, carregou a série nas costas tal qual o episódio em que Negan mata Glenn em The Walking Dead, guardadas as devidas proporções porque TWD virou o pior lixo da história da indústria de séries a partir dali, enquanto em BCS a temporada era a final e não teve oportunidade de piorar tanto.
Mas, para eu não me estender muito, vamos logo ao ponto 2. Não tenho conhecimento filosófico, que cairia muito bem aqui, das definições aristotélicas completas de personagem e caráter, ou das noções de tragédia. Parcamente posso dizer que segundo Aristóteles comédia é quando “um pequeno tropeça e cai” enquanto tragédia é “um grande desabando”. Podem soar meio obscuras ou insuficientes essas definições, mas elas me bastam. A questão com Jimmy seria: ele é um pequeno que tropeça para cima no final?
Digo isso porque a tragicomédia é mal feita nesse final. Tem pouco de trágico, a gente nem fica tão triste e sequer tem uma pitada de comédia. Aliás, a melhor participação da “série-mãe” é de Marie Schrader, viúva de Hank, e ali sim tinha potencial para a tragédia de forma realista. Mas o universo da série é caricato e nem explora tanto essa tristeza; bola pra frente.
Pra mim é como se os roteiristas do final estivessem esgotados e resolveram adotar esse combo jogando dados. E por que? Bem, volto ao meu ponto 2. Sei que o final talvez já estivesse pronto porém ele acaba sendo uma simplificação medrosa dos roteiristas.
Mas diga logo “porquê”, Roberto, páre de enrolar “for-god-sake”.
Bem, vou dizer. O caráter de Jimmy é definido no episódio 2 da Primeira Temporada, originalmente denominado “Mijo”. Ele está no deserto com uma sentença de morte decretada pelo “juiz-psicopata” Tuco Salamanca. A princípio consegue salvar sua vida e está livre, mas seus jovens comparsas de golpe serão esfolados vivos pelo traficante king (tudo ali remete a um escorpião na cena, observe bem). Jimmy poderia simplesmente ir embora, salvar a própria pele.
E esse é meu ponto 2: o caráter de Jimmy é a barganha e a persuasão, mas ele não é desprovido de ética. Talvez aqui pudéssemos recorrer à consagrada discussão proposta por Hanna Arendt sobre a banalidade do mal e sobre o fascismo no homem comum. Ao invés disso vou citar um liberal: Adam Smith fala sobre a barganha como a evolução da espada no capitalismo. A cena mostra que Jimmy é esse lutador da persuasão, o melhor advogado possível naquela situação: negociou a vida, ganhou o essencial, depois os olhos e a língua e por fim entregou duas pernas quebradas dos skatistas.
Jimmy não é um anti-herói. Sei que há um debate na cultura americana, que aliás, quase sempre antecipa as merdas que aqui no Brasil nós repetiremos (tipo programas policiais sangrentos, juízes milicianos, tiroteios em escolas entre outras modas, tudo isso se passa primeiro lá nos EUA, e 20 anos depois aqui) sobre advogados picaretas e absolutamente inescrupulosos. O jornal NYT publicou um debate sobre o assunto e apontou uma série de advogados reais que inspiram e superam Jimmy, praticamente uma epidemia de picaretas, inclusive com aqueles engraçados comerciais de TV. Um debate válido e acho que devemos ter mecanismo de automação mesmo para evitar a completa falta de ética.
Mas o final da série não funciona como essa mensagem edificante do debate proposto no NYT, até porque é mal feito. Jimmy é um criminoso sim, mas seu personagem não é um moralista que de repente resolve fazer uma pegadinha de 87 anos para provar para sua namorada que ele pode ser ético; uma crise de consciência de repente acaba com todo seu epicurismo? Isso é ridículo e quem lê pode achar que estou muito apaixonado pelo personagem para lamentar tanto seu destino. Sim, mas não é apenas isso.
Jimmy representa um patamar civilizatório no crime: a barganha e a persuasão, os menores crimes do capitalismo, mas ainda assim civilizatórios. Ele não é um recado de uma ética binária do tipo 8 ou 80 (anos?) mas sim alguém que deveria ter outro destino: aceitar-se como é, na sua natureza golpista pândega, com todas as pequenas felicidades e infelicidades que a vida de um pregador de peças reserva. Esse poderia ser um final “meio-termo” que aliás caracteriza o personagem e provavelmente TODOS NÓS: ninguém aqui é puro. Obviamente entre fazer uma faculdade à distância para dar golpe de criptomoedas e bem mais “aceitável” do que tornar-se um executor do narco-tráfico. E aliás a discussão não-moralista sobre a comercialização de drogas já passou da hora. DEA? Em pleno século XXI?
Lamento muito as mortes de Hank e Gomez. Mas Jimmi ou Saul ter desistido pelo golpe final ético é ridículo e simplório; é como se a natureza humana tivesse sido vencida enquanto na realidade ela é sempre a tentativa de novas trapaças. E isso pode ser feito e encarado sem moralismo e inclusive de forma menos nociva para a sociedade. Negar esses impulsos é coisa de um cristianismo parvo e fundamentalista.
Talvez para ser diferente de Breaking Bad, Better Call Saul teve um final anti-clímax, mas principalmente de um moralismo monocromático.
Jimmy é um bom cristão, mas nem tanto. Se você ainda não cancelou a netflix você tem 6 temporadas como bom motivo para adiar o cancelamento. Depois desse final com certeza você cancela.