Começo afirmando que esse meu texto pode ser descartável diante da enxurrada de bons artigos e matérias sobre o filme de Alfonso Cuarón, Roma (México, 2018) produção anabolizada pelo marketing da Netflix com vistas a disputa do Oscar 2019. Provavelmente é só mais um texto entre tantos. Sei que é quase uma heresia dizer isso, mas em muitos casos aqui nesse blog eu escrevo para mim mesmo. Aliás, sempre escrevo para mim mesmo, porém eventualmente algo pode servir a outrem. Nesse caso específico a abundância de autores melhores e a humildade quanto a qualidade do conteúdo que vem abaixo me fez querer alertar o leitor logo de cara. Obviamente tenho a esperança de que um ou outro me acompanhe, mas estejamos conversados: eu avisei. 

 

Teorias.

Tenho, no momento, duas autoras das quais me sirvo como chave de leitura: primeiro a americana Susan Buck-Morss no seu livro-ensaio “A Tela de Cinema como Prótese de Percepção” e em segundo o alemão Thomas Elsaesser e seu livro “Cinema como Arqueologia das Mídias”. Não farei um uso exaustivo e nem aprofundado dessas obras, apenas me refiro a elas numa combinação de dois fatores: no caso de Elsaesser – cinema como arqueologia das mídias – a noção de uma certa representação de passado e futuro, memória e projeção, e no caso de Susan Buck-Morss a constatação acerca do papel ideologizante do cinema de massas e da posição do espectador na experiência cinematográfica.

 

A combinação imagética desses dois artefatos intelectuais vejo no filme Roma, na cena do cinema: uma sala gigantesca lotada, exibindo um filme que aparenta seguir a gramática hollywoodiana de heróis. Susan Buck-Morss afirma que o espectador de cinema é presa de uma condição dúbia: exposto ao hiper estímulo sensorial ele está ao mesmo tempo com seu corpo aprisionado à poltrona. “Até a ação de vaiar ou aplaudir que poderiam interromper a performance ao vivo, é negada ao espectador de cinema.” (Pág. 33; tradução brasileira). Na cena específica a que me refiro, uma massa de espectadores aplaude o filme ao final. É apenas um detalhe mas serve como um perfeito exemplo de arqueologia midiática: plateias mundiais hoje estão individualizadas, por assim dizer, e cada indivíduo que assistiu ao filme Roma no silêncio de seu apartamento viu uma audiência em massa num gesto que se perdeu no tempo e que de certa forma é um contrassenso porque você não aplaude um artista presente, aplaude uma máquina digital ou no caso uma reação físico-química da película. Dificilmente poderíamos aquilatar se a audiência de Friends ou de Breaking Bad aplaudiu seu final assistido na Netflix. Algumas vezes eu aplaudo sozinho, em casa, um episódio de Sopranos. de MindHunter ou Barry e etc. Em Curitiba, em pleno século XXI, a única vez que presenciei uma plateia aplaudir o filme comercial ao final foi na exibição de “De volta para Futuro” na sessão clássicos do Cinemark no Shopping Müller. No festival Olhar de Cinema, que considero, sem complexo de vira-latas e sem ufanismo, um dos melhores do mundo, o público cinéfilo mantém esse hábito nostálgico do passado, que é talvez uma forma de interação. 

 

A cena do cinema a que me refiro em Roma tem esse valor arqueológico. Toda a direção de arte do filme possui muito esmero em recriar figurinos, ambientes e até mesmo espaços urbanos de época. Talvez o preto e branco tenha facilitado essa produção, e aqui o passado se projeta porque a textura da imagem soa como um filtro de Instagram, respeitadas as devidas proporções de qualidade de equipamentos para captação. Ou seja é o passado re-projetado. Além desses aspectos objetivos há, para mim, a possibilidade de, ao rever o passado de violência contra os índios, as mulheres e os manifestantes, de repensar um futuro fascista, que é o nosso presente hoje. Ou seja, a chave de leitura de Elsaesser, cinema como artefato de registro do passado e prospecção do futuro, está contemplada não apenas como tradicionalmente o cinema fez, ou seja, no futurismo tecnológico, mas também no plano ideológico-moral desse alerta. 

 

O cinema como choque, de que fala Susan Buck-Morss, e choque moral está na angústia do filme, no momento em que a protagonista tenta salvar uma criança do afogamento, nós queremos ajudar, mas não podemos, no momento em que seu parceiro agride-a com seu machismo protofascista (aliás, todo machismo é fascista porque totalitário), nós queremos ajudar, mas somos apenas espectadores. Vemos a luta dos estudantes, o massacre, mas não está em nosso poder ajudá-los assim como hoje vemos massas de eleitores cassando seus próprios direitos e nada podemos fazer. Vemos os pobres irem para o abatedouro, enganados por fake news de quinta categoria, conduzidos como gado e não conseguimos mudar a direção da manada. O hospital em que a protagonista de Roma será atendida parece um “paridouro” para usar um neologismo em sentido contrário mas ligado ao mesmo universo: gado. 

 

Imagens. 

Dizem os cineastas e também os teóricos que não há acaso no cinema, ou seja, tudo ali é controlado e planejado, ao menos como enquadramento. Por que a água e o avião se repetem? O filme começa com as águas de limpeza que a personagem magistralmente interpretada por Yalitza Aparicio usa para limpar o piso do quintal, água suja que escorre para o ralo. Num belo enquadramento que vai se repetir vemos o avião refletido na água. Esse mesmo avião irá aparecer pelo menos outras duas vezes: primeiro na patética cena do mestre de artes marciais, uma espécie de capitão do mato indígena, em pleno deserto, e depois, ao fim do filme ele reaparece no enquadramento do alto do sobrado onde Cleo vive. Confesso que não entendo essa metáfora, se é que se trata de uma. Está aí para o leitor decifrar. Esse avião está no começo, meio e fim do filme. 

 

A simbologia da água no filme vai do micro universo da água de limpeza, uma espécie de atividade baixa, consideradas as castas do mundo social (imorais e violentamente instituídas) até a macro água do mar, espaço de nobre heroísmo praticado pela mesma personagem. Do mais baixo ao mais grandioso. A personagem de Yalitza Aparicio me remonta aquela outra empregada vivida por Regina Casé em “Que horas ela volta?”. Li algumas críticas superficiais ao filme brasileiro segundo o qual ele seria repleto de clichês e me ocorre que nesse caso, talvez os movimentos retóricos dos personagens sejam de fato previsíveis, mas o que mais me parece significativo nesse caso é que a própria realidade é clichê. O Brasil deve ser o país do mundo que mais tem empregadas domésticas. Até recentemente, ressalte-se, uma categoria de trabalhadores sem direitos trabalhistas. Isso é um clichê da realidade e acho que os críticos deveriam ocupar-se dele. 

 

Talvez a referência a água seja pouco para mencionar, a título de livre associação, o filme de Guillermo del Toro, “A Forma da Água”. De fato essa associação aqui, como de resto em várias momentos desse texto, é arbitrária. Ambos os filmes, oriundos do México, tem protagonistas mulheres, empregadas; o vilão de “A Forma da Água” eu comparo ao pai da família em Roma, ainda que este seja um vilão mais cínico e menos violento. Ambos os filmes exploram ícones vintages como carros, outdoor’s, salas de cinema le etc. Ainda é pouco para aproximar filmes tão distantes, eu sei, mas temos duas mulheres em diferentes ambientes culturais e tecnológicos que podem irmanar-se de certa forma, sociologicamente.

 

Alguns outros aspectos “tradicionais”, e que são, também, minha interpretação subjetiva do filme, dizem respeito a cenas em que vejo o “efeito Kuleshov” de forma muito evidente, por exemplo, na passagem do bebê na incubadora para as cruzes do cemitério. Talvez aqui essa “rima visual” seja um clichê forte – quase um pop up imagético – embora forte e significativa. As cabeças de cães mortos na parede completam o quadro como uma espécie de metonímia que segue a pista das linhagens: do humano mais valorizado ao animal, do animal ao humano de menor valor, sucessivamente.

 

Sons.

O som é um elemento do filme muito destacado pelos analistas técnicos e aqui confesso minhas incapacidades, minhas limitações no assunto. Mas meu foco ideológico-moral me deu a seguinte percepção, que considero cara, embora possa ser uma mera ilusão perceptiva: o som é baixo quando, no começo do filme temos a protagonista respondendo em espanhol e só aumenta pela primeira vez quando ela fala em mixteco, sua língua nativa. Encaro como uma forma de empoderamento, de pertencimento e autonomia cultural. Quando a personagem fala ou responde algo para a família-patroa, em espanhol, ela fala baixinho, e no momento em que ela vai conversar com sua colega o volume se expande em alto e bom som. A verificar.

 

Enredo.

As metáforas visuais falam por si só. Por exemplo a cena em que protagonista brinca com o garoto fingindo e diz: “estou morta , não posso falar”. É preciso dizer algo mais sobre uma empregada doméstica indígena assimilada quase como uma ama de leite no seio de uma família branca?

 

 

A história coloca em paralelo as angústias da mulher branca, quase emancipada ainda que abandonada num divórcio, com a violência sofrida pela mulher índia. O amor da família é ironicamente descrito como funcional: todos amam Cleo, mas ela ainda deve buscar a comida no auge de capítulo da novela assistida pela família. Talvez se possa dizer, em defesa desse clichê ancorado no real, que o filme não prepara para a tragédia que pode vir a qualquer momento. E são tragédias com as quais os fracos devem se conformar e seguir em “frente”.

 

Nota 9,0/10,0

 

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Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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