O filme é cinema clássico: aquela mistura de música (jazz e também polca nesse caso), enredo e dramaturgia que marca ao menos em parte a produção cinematográfica hollywoodiana. No começo há uma espécie de tour de force bastante sutil entre os personagens do protagonista, interpretado/incorporado pelo próprio Eastwood, e sua família. É uma tensão de baixa voltagem mas que carrega o peso das teimosias familiares. Gosto muito desse primeiro ato. Nele vemos o personagem de Earl, veterano de guerra e que vai se tornar mula dos traficantes mexicanos, teimando com a família para manter seu estilo de vida , apesar dos remorsos por ele provocados. Percebo algum esquematismo nos diálogos, nas falas, que parecem visar a esclarecer, como legendas a história. As figuras de Eastwood e Dianne Wiest conseguem contrabalançar esse esquematismo.

Compreendo o segundo ato como a entrada em cena dos personagens mais liqüefeitos do filme: temos caricaturas de chefes do tráfico de um lado, e caricaturas de policiais de outro. O eixo gravitacional do conflito sai do plano familiar e passa para o social.

Por fim o terceiro ato nos conduz ao ápice da tensão, apesar das simplificações edificantes (traficantes arrependidos, policiais que esquecem a família), uma tensão que é suportável, quase tão leve quanto aquela que se vê em Gran Torino. Os finais desses dois filmes me fazem pensar num cinema dos anos 70, com música e aquela câmera que vai dando um zoom out – ao contrário – no personagem que desaparece na multidão de alguma cidade; uma espécie de momento blasé que me lembra Woody Allen. É curioso que no caso de A Mula o personagem vai para esse limbo, mas dentro de uma prisão: lentamente Eastwood desaparece, pequenino, no quadro à direita da tela até sair dela completamente.

A filmografia é “simples”: a câmera límpida acompanha nosso herói solitário pelas campanas e belas paisagens do interior dos EUA – quase um cowboy do velho oeste, um revisitar o passado do ator. As músicas são essenciais para encorpar essas cenas. Aliás, cada vez mais me pergunto sobre o valor predominante da musicalidade para moldar imagens. Aqui ele dirige Bradley Cooper, que é hoje o galã que Eastwood foi no passado; Cooper é filmado em filtros, em espelhos, quase como se um mentor estivesse orientando seu pupilo a perceber-se e a aprender com o velho mestre.

Não sei se esse filme é mais autobiográfico do que aparenta, mas um de seus méritos é ser representante de um conservadorismo civilizado, em contraste com o nazi-conservadorismo que hoje se manifesta no Brasil e nos EUA. Lembremos que nosso personagem é um veterano de guerra, portanto alguém que lutou contra nazistas. Ainda que Eastwood às vezes pareça remeter-se à um “estágio idílico e decente” perdido no tempo, no passado, a maneira como ele elabora seus “deslizes” é sensata, em contraste com o bolso-trumpismo miliciano e plutocraticamente violento. Há um momento em que Earl aparece no casamento de sua neta e diz à ex-esposa: “Tivemos 10 anos bons, podemos ser civilizados em homenagem à eles”. Curioso que seja um conservadorismo para ambos os lados, ainda que retrate o lado traficante como muita ferocidade, ao passo que o lado policial é denunciado com suas típicas manipulações e abusos. Sofrer uma abordagem policial é um dos momentos mais perigosos da vida, diz um personagem.

No geral esse “excesso” de temas – família, envelhecimento, morte, hedonismo, violência, amor – parece tornar o filme um tanto fluido – talvez intencional, conforme a filmografia recente, ou o estilo do realizador – mesmo assim trata-se de duas horas de tela agradáveis, diante de uma sequência de cortes leves e quase didáticos. Particularmente didático é o momento em que o personagem diz algo como “pode-se comprar tudo, mas não pude comprar tempo“. O tempo que ele queria ter passado com a família. Gosto muito de Imperdoáveis (1992) e tenho a impressão que nele, assim como em Gran Torino, o herói decaído com suas virtudes é o foco. A força de verossimilhança está no fato de que é um homem no fim do seu tempo que diz “enjoy your time”. Mas não desperdice-o.

Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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