Por Roberto Blatt

 


FINALMENTE assisti “As Boas Maneiras” (Brasil, 2018), um terror de lobisomem dirigido pela dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, ou Rojas & Dutra se quisermos uma sertaneja raiz. Brincadeiras (de gosto duvidoso) à parte, o filme bem poderia ser dividido em dois, e quase sou tentado a dizer que há dois filmes ali. O primeiro filme vai do começo até quase exatamente a metade, o momento do parto, uma cena grotesca que faz Alien parecer fashion. O segundo filme é desse ponto em diante com uma pequena transição em que o “bebê” (de Rosemary – sic) quase é abandonado, mas logo inicia efetivamente a segunda parte com a criação do menino. O primeiro filme é de grande intensidade, o segundo é bastante novelesco.

 

Gostaria de manter a tradição de dizer logo de cara: o filme poderia figurar num quadro do Fantástico, falo do famigerado programa dominical da TV Golpe, como uma espécie de distração. É sob muitos aspectos uma obra de diversão como suspense e terror light. O formato de fácil digestão deve bastar para plateias bovinas, e digo isso com o mínimo de arrogância possível e com o máximo de humildade que minha vã sociologia permite. E por que digo isso? Porque é provável que o público brasileiro assista esse filme sem fazer qualquer alusão à questão racial e social que ele permite especular. Obviamente eu especulo dessa maneira e nenhum outro espectador é obrigado a fazer o mesmo. 

 

Dito de outro modo, não consigo deixar de pensar numa questão racial e social implícita no filme: uma moça rica, branca e da elite rural, precisa de uma babá que, curiosamente é negra e vai cuidar e criar seu filho. As metáforas entrecruzam-se na primeira parte: a moça rural é uma hedonista, liberal, e isso soa mais cosmopolita do que a atitude estoica e deprimida da moça urbana. Dirão que essa alegria e tristeza tem a ver com dinheiro, mas no filme o enfoque retórico não é esse. 

 

A obra, inegavelmente, tem um ritmo interessante no suspense e ficamos de fato tensionados com a situação, quase à maneira do primeiro episódio da série Room 104 (EUA, 2017) onde uma babá está à merce de uma criança com dupla personalidade num transe demoníaco. A situação da personagem Clara é muito parecida com a dessa babá do seriado americano, e temos a impressão de perigo muito bem construída na primeira parte.

 

O climax de terror só irá retornar levemente na segunda parte durante a carnificina do menino no Shopping, cena que me fez pensar em Tubarão, de Spielberg, por conta do perigo que se aproxima subterrâneo, quando as mesas da praça de alimentação vão sendo derrubadas, quase como o pavio de uma bomba hitchcockiana até chegar à explosão final de sangue.

 

O crítico Inácio Araújo assinalou a sutileza política dessa sequência: pobre devorando pobre dentro de um centro de consumismo. Aliás, Inácio escreveu seu texto sobre o filme respondendo outro crítico, o Eduardo Escorel que havia desancado As Boas Maneiras. Além dessa reflexão acerca da luta entre irmãos numa sociedade de consumo, Inácio também nos incita a refletir sobre a tentativa da mãe de proteger o filho contra aquela monstruosa vontade de devorar, outra referência ao capitalismo selvagem. Trata-se do maternal sentimento de quem não quer seu filho perdido na sociedade de performance ou, no caso dos pobres, sociedade do fracasso.

 

Em tempos de crise de uma economia periférica como a nossa, um país agroexportador e pouco desenvolvido tecnologicamente, onde o consumo e os serviços são motores do comércio, a própria visão de um shopping vazio causa calafrios, notadamente depois do golpe de 16. Mas deixarei os links para esse debate interessante entre os dois graúdos ao final do artigo até porque Escorel não está completamente errado na sua crítica ácida sobre o filme, notadamente na segunda parte. Ressalto o importantíssimo da crítica, mesmo mau humorada, porém algumas de suas afirmações carecem completamente de fundamento, como por exemplo essa: 

 

Há algo muito inquietante na opção de As Boas Maneiras por fazer um espetáculo de terror – parece resultar da intenção de apelar aos instintos mais baixos do espectador, homens e mulheres que o filme pressupõe que sejam apreciadores do sobrenatural e para os quais entretenimento e racionalidade seriam incompatíveis. Se essa hipótese for comprovada, confirmará a distorção de valores que se tornou cada vez mais comum no cinema brasileiro, dito comercial, nos últimos quinze anos.” 

 

SIMPLESMENTE não dá, realmente não dá, para entender de onde o respeitável cineasta concluiu que o filme trabalha com essa oposição – entretenimento vs racionalidade – de forma teologicamente dogmática. Nem mesmo a oposição entre instinto e racionalidade, que seria mais do âmbito da filosofia, está pressuposta claramente no filme. Ainda assim é válido o alerta, e importante, inclusive sobre a qualidade desse comercial no cinema. Os links para os dois textos estão no final desse artigo.

 

Voltemos ao filme. O ritmo do suspense é digno, modesto e bem feito, mas os diretores nos dão um alerta trash direto, um misto de alívio cômico com uma carta de alforria: eles não são escravos do gênero, farão o que bem entender, e inclusive brincar na tradição antropofágica de estilos: mixar o folclórico e o urbano, o rito tradicional da família brasileira e a liberdade de transar.

 

O alerta é incisivo e dado numa cena direta. Estou falando da cena em que, depois de peripécias draculescas na noite sonâmbula, corta de sopetão para a personagem Ana dançando uma balada sertaneja com toda a felicidade que a segurança de seu apartamento de classe alta propicia. Devo confessar que achei excelente a edição, achei realmente de um bom humor impressionante. Se deixar correr meu delírio sociológico eu pensaria nisso como uma metáfora da sociedade brasileira atual: a elite rural suga o sangue dos brasileiros durante o dia e se esbalda no bailão à noite. Obviamente isso é delírio e a cena tá aí para ser curtida.

 

 

 

Marjorie Estiano merece um Oscar por essa atuação: ela encarnou a moça rural hedonista como há tempos não se via. Goiás Velho tirou o chapéu. E enquanto ela queima as calorias da balada a introspectiva Clara permanece com um “pé na cozinha” para citar outra lembrança da frase famigerada de FHC sobre democracia racial brasileira.

 

 

 

Até aí estamos bem, inclusive com um flashback de desenho em quadrinhos perfeito para falar de uma passado de lendas. O que vem depois da cena grotesca do “parto” parece ser outro filme, com outros dramas e uma evolução da personagem que também destaca a atuação magistral da atriz Isabel Zuaa que simplesmente deu aula de dramaturgia cinematográfica e segurou o “rojão” até o final do filme. E que rojão sem solução.

 

Destaco também para a banda sonora, não apenas a trilha sonora, mas toda a sonoplastia e efeitos. Aliás, a trilha também poderia ser destrinchada segundo essa divisão em dois filmes: no primeiro temos uma musicalidade mais pop com Can’t Take My Eyes Off You e Chora Me Liga, enquanto no segundo há toda uma espécie de erudito religioso, não mundano. Se você quiser conferir esse aspecto isolado do trabalho dê uma olhada nesse link do souncloud onde toda essa musicalidade especificamente criada (de forma linda) para falar o “sobrenatural”, a fábula do filme está presente:

 

 

 

 

Além da musicalidade a fotografia do filme está impecável, inclusive me peguei buscando desesperadamente algumas referências para justificar tanta beleza. Gotham City de Tim Burtom? Não, é São Paulo de Rojas & Dutra.

 

 

 

Nesse ponto eu penso na famosa cena de Glauber Rocha no filme, Vento Leste (Alemanha, 1970) de Godard em que o famoso diretor está numa encruzilhada falando sobre os dois caminhos do cinema. Tomo a liberdade de citar a transcrição que aparece num texto de análise do estudioso Matheus Araújo, professor da escola de Cinema da USP. Glauber declama o seguinte: 

 

“Para lá, é o cinema desconhecido, o cinema da aventura.
Eh… pra aqui, é o cinema do terceiro mundo, é um cinema
perigoso, divino e maravilhoso, é o cinema [vítima] da
opressão de consumo imperialista, é um cinema perigoso,
um cinema divino maravilhoso, é o cinema [vítima]32
da repressão, da opressão fascista, do terrorismo, é um
cinema perigoso, divino e maravilhoso… é um cinema
desconhecido, é o cinema bola-bola de Miguel Borges, é
um cinema perigoso, divino e maravilhoso, é um cinema
que vai construir tudo, a técnica, as casas de projeção,

a distribuição, os técnicos, os trezentos cineastas por ano
para fazer 600 filmes para todo o terceiro mundo, é um
cinema perigoso, divino e maravilhoso, é o cinema da
tecnologia que vai se incorporar à [palavra inaudível] para
a alfabetização das massas no terceiro mundo, é um cinema
perigoso, divino e maravilhoso. É o cinema desconhecido,
o cinema de Glauber Rocha…”

Fonte:

https://guaciara.files.wordpress.com/2009/03/glauber.pdf

 

Pois bem, fiquei pensando nisso acerca do filme “As Boas Maneiras”: é um cinema do terceiro mundo, perigoso e que oprime? Ou seja, um cinema não educativo sociologicamente e nem transgressor como linguagem, visto que é cinema de massas? Ou é um cinema de aventura, de direita, que justifica as coisas como elas são? Talvez não seja nem uma nem outra. Talvez a encruzilhada de Glauber Rocha esteja um cadinho anacrônica e filmes como “As Boas Maneiras” podem ser sintomas de cosmopolitismo, inclusive à maneira de Corra (EUA, 2017) de Jordan Peele que discute o racismo por meio de filme de horror.

 

Um tipo de sintoma que a sociedade americana exemplifica bem visto que filmou-se dos modos mais estereotipados possíveis e impossíveis no passado e ainda no presente, e esse filmar-se serviu como modernização espiritual. Não precisamos seguir pelo mesmo caminho, mas é triste que estejamos impedidos apenas por não termos os equipamentos técnicos. Quando vemos a quantidade de imagens que os arquivos americanos apontam, pode-se ter uma ideia das razões de seu domínio cultural. Nosso passado não foi tão bem filmado.

 

Talvez seja, afinal, o cinema moldando o pensamento de nossos dias e, nesse sentido, As Boas Maneiras é curiosamente retrô e civilizador. O filme justifica a elite curtir a vida e contratar babás? Parece que de certa forma sim. Mas ao mesmo tempo aponta seus absurdos conservadores, e mesmo suas ilusões e tristezas. A realidade é homo, é bissexual, é tri, é pan. As massas podem ser medievais, linchadoras, moralistoides, mas as gentes diferentes irão resistir e enfrentar. Há uma aliança amorosa entre os excluídos e aqueles que sabem que a vida deve ser vivida contra as hordas de linchadores do século XXI. Ao seu modo, As Boas Maneiras é cinema de aventura e ao mesmo tempo “divino e maravilhoso”.

 

 

Nota: 8,5

 

Links para textos

 

1-) Texto do Inácio Araújo

https://cantodoinacio.wordpress.com/

 

2-) Texto do Eduardo Escorel
https://piaui.folha.uol.com.br/as-boas-maneiras-sinal-de-alerta/

 

3-) Um terceiro artigo magistral está nesse link do site Palavras de Cinema:

https://palavrasdecinema.com/2018/07/19/as-boas-maneiras-de-marco-dutra-e-juliana-rojas/

 

 

 

Assista ao “discurso” de Glauber:

 

 

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Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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