Barbosa tomou um gol em casa, na final da Copa do Mundo no Brasil em 1950 e passou a vida com essa marca. Acho essa história tão trágica na história do futebol, na verdade na história da vida, que penso nela e me lembro da máxima de Nietzsche acerca do “eterno retorno”: amor fatti! Que seria algo como amar o destino, mais do que aceitar, amar.

 

 

“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”

Nietzsche, Gaia Ciência, §276

 

O estudioso brasileiro de Nietzsche, Oswaldo Giacóia (todo mundo da área conhece esse mestre da Unicamp) afirma que, para além da questão cosmológica do eterno retorno (sim, existem matemáticos que tentam provar a necessidade de a configuração material finita – sua “massa total” – do universo ter de repetir-se em cima de uma linha do tempo infinita) bem, para além dessa discussão física o ponto mais importante é a questão da temporalidade e, penso eu, uma espécie de moralidade que dança no fio da navalha entre o conservadorismo e o realismo trágico da vida.

 

O homem não consegue parar o tempo, não consegue mudar o passado e nem prever o futuro. O presente é o passado e o futuro virtuais, e vice-versa, pondero, novamente. Essencialmente você não pode mudar o ontem, a cagada que você fez, o erro que cometeu, a culpa que isso te gera, a oportunidade que perdeu, NADA disso volta.

 

 

Pois bem, segundo Giacóia o eterno retorno, outro tema-conceito importante do filósofo alemão, é o presente de Nietzsche para o mundo (segundo ele próprio inclusive) porque devolve ao homem algum controle sobre o passado e o futuro.

 

Mas como? Bem, embora, segundo essa proposição, todas as desgraças e dores escruciantes que por ventura você tenha sofrido no passado você voltará a sofrê-las outra vez e outra e outras infinitas vezes, ainda assim você tem a opção de amar esse destino e portanto desfrutar cada momento na sua singularidade. Também os teus prazeres e glórias se repetirão, se é que isso serve de consolo.

 

A prescrição nietzschiana é que você ame cada milissegundo da sua existência. Rumino essa ideia, sempre com algum ressentimento quantos às desgraças da minha vida. Por exemplo, quando vim morar em Curitiba eu odiava acordar cedo e caminhar da CEU até a Reitoria de manhã cedo debaixo de frio e chuva, que caracterizavam a cidade naqueles finais dos anos 90.

 

 

Amaldiçoei por um semestre inteiro essa merda – sic – de situação, e de cidade, até o dia em que voltando pra casa, torcendo para chegar rápido antes da chuva, tomei uma banho de uma tromba d’água lá no comecinho do Passeio Público.

 

 

Pra minha sorte, naquele momento, tive uma epifania ao lembrar de uma frase de Nietzsche que tinha lido na Biblioteca momentos antes. Infelizmente não recordo em qual texto. Em essência foi uma epifania, ou um insight, não sei, porque o filósofo escreveu: “É preciso aprender a amar o inevitável!“. Foi o que bastou para eu vislumbrar/compreender (ou achar que compreendi) essa filosofia nietzschiana e ao mesmo tempo ver beleza em estar todo enlameado e com frio: era inevitável.

 

Quando penso em Barbosa e nesse estigma dos derrotados eu penso nisso tudo: ele poderia querer voltar no tempo e dar um passinho pra frente e defender aquela MERDA daquela bola e milhões de brasileiros explodiriam de alegria? Pode ter vivido assim até morrer, com esse re-sentimento, essa culpa?

 

 

Mas não tem jeito! O tapa dado, a palavra falada não voltam mais. A bola não sai da rede. Mas será que Barbosa poderia viver plenamente essa máxima nietzschiana de amar o seu destino e aceitar que aquele maldito chute do Gigghia sempre vai varar a nossa rede???

 

Talvez ele tenha vivido. Segundo Nietzsche, viverá de novo. E de novo, eternamente. 

 

Então talvez seja o caso de aceitar mesmo, não se levar tão a sério. O leitor provavelmente perceberá em mim uma boa dose de inconformismo. É verdade, e tenho certeza de que nada disso é fácil pra ninguém. Nietzsche é controverso.

 

Disse acima e repito: o amor fatti está entre o estoicismo, o conservadorismo e o realismo. Nada simples, ainda mais considerando que o filósofo era crítico de qualquer ideal emancipatório, cristão, socialista ou feminista. Mas, penso eu, era crítico não pela (in)justiça das condições que essas causas defendem, e sim, pelo igualitarismo tacanho, aquele que destrói a diversidade. Aceitaria bem a aristocracia nietzschiana num mundo sem racismo e classismo, por exemplo. Uma espécie de hierarquia natural, talvez ao modo dos índios. Mas isso é outro debate.

 

O meu ponto aqui é esse conformar-se com a vida, que parece um ímpeto anti-revolucionário, às vezes. Um cineasta que me pareceu inconformado, por exemplo, é o Tarantino. Escrevi sobre o último filme dele nesse blog, Era uma vez em Hollywood…  embora possa parecer equivocado nas escolhas que faz optando por mostrar aquela masculinidade ultrapassada dos anos 70, o cineasta me deixou com a impressão de que não aceita o horror da morte da atriz Sharon Tate. Não consegue aceitar o passado e assim reconstrói no presente uma fábula conformista, com outro final. É uma atitude possível, ora bolas. Se amamos o que é, como Nietzsche propõe, podemos amar a esquizofrenia inclusive. É uma questão, sem resposta, por ora. 

 

Hoje aqui quero apenas pensar nessa espécie de petição de princípio da filosofia de Nietzsche: amor fatti, é também amar o odiar à vida? Se a resposta for sim, e suspeito que é, tudo fica como está, tendo apenas uma pequena vantagem psicológica, que pode não ser tão pequena afinal. Essa capacidade de aceitar a realidade, levantar e ir pra cima é uma grande qualidade. Pode ser útil tanto à direita quanto à esquerda, lá sei eu.

 

Mas Barbosa sorriu muito e esses sorrisos também se repetirão, é um consolo. Tem alguma luz no fundo das redes afinal. Além disso, enquanto escrevo tudo isso em tom de “melancólica nostalgia” me pergunto se, afinal, não gostamos um pouquinho de tragédia… entraríamos num debate ainda mais maluco, uma espécie de sociologia ou psicologia das massas sadomasoquista. 

 

A palavra da moda é Ubiquidade. Talvez um futuro hiper técnico possa recriar um universo holográfico tão bem encravado na memória e que seja ao mesmo tempo um mundo escolhido, quase como um consumidor escolhe um produto no ML. Alguém poderia escolher um passado em que Barbosa vence. Nietzsche talvez dissesse que, na derrota, ele venceu, porque viveu e somente viveu se disse sim aquele momento. Um nietzschiano então poderia abdicar do aparato tecnológico e simplesmente aceitar.

 

 

 

***

Aqui o filme de Jorge Furtado que é muito legal para pensar essa situação, pois fala de um jornalista que, através de uma máquina do tempo, volta para o dia do jogo e tenta avisar Barbosa sobre o gol.
BARBOSA (curta-metragem)


A matéria que me motivou a escrever esse texto é a seguinte:
A mágoa de Barbosa

 

Outro artigo muito legal sobre o assunto é esse aqui:

Brados do silêncio: os 70 anos do Maracanaço

 

Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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