Estou há dias pensando no quê e como escrever sobre esse filme. A grande dificuldade que sinto para essa tarefa, para além da minha simples limitação intelectual, eu também a tomo como sintoma do resultado “efetivo” do filme… ou do seu “não-resultado”. Tomei coragem e vou dizer algumas coisas, inclusive que eu mesmo considero um tanto pusilânimes.

Durante a exibição eu já me senti em consonância com certa crítica rançosa que, em Cannes, apunhalou o filme com o rótulo de pornô-miséria. Não entrarei muito nesse mérito específico, até porque tentei me rebelar contra essa tendência do meu pensamento que se alinhava àquela crítica corrosiva. Mas a impressão que derivou para um malthusianismo vitimista me pegou forte.

Pois bem, vejamos. Cafernaum é história de um garoto que vive numa cidade da Síria (provavelmente Beirute) cuja situação de pobreza é comparável as nossas favelas. Zain é obrigado a trabalhar em diversas tarefas braçais pesadas para obter algum tipo de sustento e ajudar sua numerosa família. Quando sua irmã Sahar, de 11 anos, é obrigada a se casar com uma homem muito mais velho, ele planeja uma fuga para outra cidade. O plano não dá certo e o menino acaba fugindo sozinho. Entre esses plots do personagem somos apresentados à situações terríveis, como super-encarceramento, contrabando de analgésicos por meio de roupas a serem lavadas e assim remover a droga, imigração ilegal, além condições de vida impossíveis para mulheres e crianças.


Sahar, a irmã de Zain.

Mas o mais dramático é o contexto da adolescência da sua irmã, pois vemos ele tentando ajudá-la a disfarçar a primeira menstruação para fugir do casamento. (Spoiler) Nada disso dá certo e a menina se casa, é “estuprada” pelo seu “marido, aceito pela família, e morre devido as hemorragias. Zain esfaqueia o homem que se casou com sua irmã e, por esse crime, é condenado a cinco anos de prisão. Como resultado o garoto decide processar seus pais por terem colocado-o no mundo. É um enredo que, com esse desfecho, bem poderíamos classificar de schopenhaueriano. Quase poderíamos atribuir-lhe a máxima grega “o melhor é nunca ter nascido, mas se nasceu, o melhor é morrer rápido”. Nietzsche, no livro O nascimento da tragédia é quem nos informa acerca dessa fala do Sileno, seguidor de Dioniso: “O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer“. Em alguns momentos temos a impressão de que Zain incorpora esse realismo com muito vigor.

Ainda assim trata-se de uma criança e o que verte dela é quase pura revolta. Penso em comparar esse personagem com alguns outros marcantes da história do cinema: Jim Graham, de Império do Sol (EUA, 1987), e Josué do lindo Central do Brasil (Brasil, 1998). Mas há um outro rosto que me vem à mente ao pensar nesse contexto do Oriente Médio: Ali, de Filhos do Paraíso (Irã, 1999) filme cujo retrato da infância contrasta com a maioria dos outros por seu aspecto ingênuo e focado numa beleza espiritual que, não raras vezes, foi acusada de ser propaganda oficial do governo iraniano acerca das qualidades de suas crianças. A acusação sobre o suposto aparelhamento de Filhos do Paraíso é tão pusilânime quanto a que farei a seguir. Em Cafarnaum as qualidades do protagonista também aparecem, mas, por outro lado, vemos uma forma de ingenuidade que não raras vezes é agressiva, e comportamentos muito mais delinquentes, coisa que não acontece em Filhos do Paraíso.

Ali de Filhos do Paraíso

Mas vamos à minha pusilânime acusação: Cafarnaum tem uma obsessão pelo rosto do seu protagonista, ele está em muitos closes. Quase podemos ver a diretora fascinada pela beleza do menino. Há expressividade, sim, mas eu me pergunto se esse fascínio aconteceria com um menino de rosto feio. Digo isso com muitos escrúpulos fervilhando porque entendo o que significa feio nesse mundo ao mesmo tempo que desejo participar de uma concepção de beleza capaz de superar padrões estéticos enraizados. Zain é um rosto praticamente ocidental. Arrisco a dizer que seu “personagem” poderia ser filmado por um ator mirim britânico.

Enfim, é apenas uma coisa que me ocorreu e, como disse no começo desse texto, fiquei pensando sobre o resultado desse filme, sobre o extrato intelecto-emocional dele resultante. Não conseguia achar esse conteúdo para além de uma sopezada miséria, amplamente denunciada. A primeira coisa que pensei ao sair da sessão foi que eu queria uma filme mais realista, e isso soou estranho. Trabalho aqui com a distinção entre teoria formalista e teoria realista do cinema, proposta por Elsaesser & Hagener no livro “Teoria do Cinema: uma introdução através dos sentidos” (Papirus, 2018) onde os autores propõem que as formalistas veem o filme como uma construção artística, ao passo que as teorias realistas enfatizam o caráter de transparência do real como potência maior do cinema. Simplificando essa distinção eu diria que um filme realista tenta propor menos simulacros e seguir ritmos mais naturais, enquanto que um formalista explora todas as armas narrativas artísticas da montagem e etc. A abertura de Cafarnaum, por exemplo, é praticamente um clipe musical de garotos brincando, e o fluxo por imagens aéreas possui um ritmo que a gente sabe que vai parar e cortar para outra coisa, ou seja, aquela perspectiva do cenário lacerado da favela é quase uma pintura introdutória cuja poética ira contrastar com uma cena da “realidade” rasteira.

O aparecimento da diretora no momento em que a história ruma para suas consequências finais parece uma metáfora da situação: uma mulher com outra cultura – sua personagem é advogada de Zain – que está intervindo naquele meio e que é acusada de ser estrangeira. A sua inserção como atriz funciona como antídoto quase declarado para uma eventual critica nesse sentido. Para mim, porém, não foi suficiente.

As noções culturais de casamento me parecem chocantes e inaceitáveis; não são nem mesmo respeitáveis de um ponto de vista antropológico. Ainda assim, e por fim, devo dizer que o discurso acerca da “procriação incontrolável” me deixou bastante preocupado: parecia sintoma de um malthusianismo de Armagedom. Poderia derivar para uma justificação da napalmização da Síria e territórios? Não tenho certeza.

É preciso dizer que o filme prende a atenção e deixa o espectador interessado no resultado das peripécias pelas quais passa o protagonista que está à mercê de um mundo, de uma cultura hostil, atrasada e que abandona crianças. Pelo menos é esse o cenário construído pelo filme, a arena para que o pequeno Davi enfrente seu Golias. Eis o problema.

Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

Visualizar Artigos