Por Roberto Blatt

 

 

Esse artigo abordará o episódio piloto da série “Patrick Melrose” (EUA, Reino Unido, 2018) com um ou outro SPOILLER descritivo. Tratarei do assunto tendo em mente o que chamo de “Paradigma de Mittel”: a comparação que esse autor faz entre o episódio piloto de uma série e um tutorial de videogame (a ideia está no seu livro Complex TV The Poetics of Contemporary Television Storytelling, de 2015, em um dos primeiros capítulos, o segundo, para ser exato, intitulado “Beginnings”). Tal comparação visa demonstrar que pilotos tem a função de “educar e inspirar” expectadores nas regras e metas daquele universo, mais ou menos como as explicações sobre setas, teclas e objetivos do tutorial de videogame. Essa função do episódio inicial é curiosamente meta-narrativa, pois, segundo Mittel atinge inclusive os produtores do show que podem alterar os caminhos, ou mesmo descobrir novas estratégias para “solucionar” a trama da série.

 

 

Ainda segundo o autor, nos primeiros minutos de um piloto temos um tutorial bastante claro do que esperar da série, das regras do seu universo narrativo, e isso dá-se através da própria abertura da série. Um exemplo marcante, citado por Mittel é a série Twin Peaks cuja demorada abertura do primeiro episódio é uma espécie de treinamento da paciência e do espírito contemplativo que ela exige: longos planos da paisagem da cidade acompanhados de uma música que imediatamente nos coloca numa vibe de meditação. Observem que esse exemplo resolve todo o exercício cognitivo-espiritual que o espectador deve encarar para assistir a série. Comparem com a abertura de qualquer outra e teremos o mesmo caminho de preparação mental. Pense-se, por exemplo, no medo em The Walking Dead (aliás, nesse caso a abertura está falseando a série que já não assusta nem criancinha), talvez American Horror Story seja um exemplo mais honesto; pense no clima suave da abertura de Community ou no suspense de Criminal Minds.

 

 

Patrick Melrose começa com um telefone tocando aquela campainha antiga que gera sensação de uma espécie de telegrama com notícias vindo de outro universo. Imediatamente o protagonista entra em cena. Aparentando estar completamente drogado, atende uma ligação cheia de ruídos e, em alguns momentos, muda, com informações sobre seu pai. Eis aí o modelo do episódio, e talvez da série. O personagem vai repensar o seu passado e sua relação com o pai.

 

 

Os temas estão todos aí na primeira cena: paternidade, drogas, morte, vida dionisíaca. Um minuto de cena e todos esses assuntos são informados. Sucesso absoluto na semiótica. Ao término dessa “abertura” Patrick sorri prazerosamente, como se estivesse, afinal, feliz com a morte do pai. A atuação de Benedict Cumberbatch é excelente e muito convincente nesse momento, é um ator no auge da sua capacidade dramatúrgica. O fato de ter sido tão convincente na atuação me fez pensar em Sócrates do diálogo Fédon, que ocorre justamente no dia em que o filósofo vai morrer, e é quando ele afirma categoricamente que prazer e dor se revezam, onde está um logo em seguida virá outro.

 

 

A estética inglesa da fotografia me fez lembrar, inicialmente, outra série: a dramédia The End of the F***ing World (Inglaterra, 2017, disponível no Netflix). Não descarto as semelhanças e aproximações, mas deixarei de lado essa especulação, ao menos nesse artigo.

 

 

Destaco também a excelente, mas excelente mesmo, trilha sonora que logo de cara contribui para estabelecer esse universo dionisíaco e trágico de Patrick Melrose. A câmera, por sua vez, é límpida, high tech, daquelas que parece caríssima, a ponto de parecer mais um elemento do mundo fashion rico que está retratando, e inclusive é uma câmera cheia de movimentos e detalhes curiosos, sofisticados, como por exemplo ao filmar o forro espelhado em mosaico no aeroporto e em seguida mirar o andar do aristocrático personagem. É apenas um detalhe exemplo da mise-en-scéne, mas demonstra do que se trata desde o começo.

 

 

Aliás, a direção de arte está impecável, embora pudéssemos pensar que foi facilitada pelas locações: aeroportos e principalmente hotéis de elite, que geralmente preservam arquiteturas retrô monarquizadas, se me permitem o neologismo da expressão. Ainda assim não podemos exatamente reclamar do expediente.

 

 

Veja o frame do aeroporto.

 

 

 

Logo em seguida passei a pensar na filmografia de Wes Anderson. O clima, a temperatura de cores, a simetria de algumas imagens, e o próprio modo como a estória é narrada, o estilo, o ambiente aristocrático, a voz off brincando com a diegética, etc, foram elementos que associei inconscientemente ao filme Os Excêntricos Tennebauns (EUA, 2001), embora distantes da emotividade mais cômica do filme americano.

 

 

 

 

 

É curioso observar que cada detalhe visual desse episódio pretende insinuar a aristocracia e a simetria de um mundo de riqueza e hierarquia. A expectativa constante, no entanto, é de que esse cristal vai se estraçalhar. Ainda assim durante todo o episódio fica claro esse aspecto de poder: os ricos podem se expressar, inclusive em voz alta, podem quebrar quartos de hotel ou até mesmo zombar dos “plebeus” e, principalmente, podem ter vida interior, ainda que excêntrica. Os empregados devem tolerar tudo à distância. Observe o sub-texto possível da relação do playboy rico e seu “assessor” com traços negro-indianos no frame abaixo.

 

 

 

 

A câmera segue brincando em algumas cenas, como na entrada do personagem “em binóculo”,  outro artifício que me fez pensar na liberdade filmográfica de Wes Anderson, e numa espécie de plano holandês, uma leve angulação no restaurante armênio, justamente um ambiente exótico, desfrutado do ponto de vista de ricaços ocidentais, mas que aqui vira cenário de uma insinuante relação complementar edipiana. 

 

 

E agora estamos quase chegando em Trainspotting (EUA, 1996). Embora as cenas iniciais de uso de heroína sejam razoáveis, em sua verossimilhança, elas são “recreativas” perto da sequência que reveza a casa de um traficante negro, onde a injeção é com uma agulha gigante, supostamente fervida, e em seguida outro fornecedor branco, em cujo ambiente, mais asséptico, o protagonista finalmente encontra a “dosagem” que procurava.

 

 

O que se segue é praticamente uma cena de exorcismo inverso, como se um demônio estivesse entrando no corpo de Melrose. Ressalte-se novamente a interpretação do ator e a noção de passagem de tempo, de um ambiente para outro: nosso personagem desmaia na casa do traficante e acorda no seu quarto de hotel.

 

 

 

 

 

O “pico” de heroína, em meio a todas as lembranças do pai, cria um clima de puro absurdo e Patrick tenta pular da janela. Mas não consegue abri-la: “qual o sentido de uma janela se não pode pular por ela?“, diz ele. Ao amanhecer percebe a janela aberta. Um belo plano geral da cidade de Nova York revela a altura de onde podia ter pulado e pensa: “o sol brilhou sem ter alternativa no nada de novo“. ÉPICO. Atualizou as definições de episódio piloto, mas bem poderia terminar aí, o que é curiosamente ambíguo para um episódio de estréia. Teria que acabar aí. Será que a série conseguirá manter o ritmo ainda que sob pena de saturar? Ou veremos alteração nessa alucinada dinâmica de primeiro episódio? Alcançou o teto. E agora?

 

 

Finalmente, quando o Patrick conta que tentou se matar e quer retomar o controle da sua vida, Johnny pergunta: o que quer por no lugar da droga? Qual a alternativa na vida? Sem resposta ele finalmente cai no choro, no luto. Sócrates tinha razão: onde estava o prazer logo em seguida virá a dor.

 

 

Nota: 9,5/10,0 como piloto!

 

 

P.s: Se você quiser ouvir a sonzera desse episódio a trilha sonora está no TuneFind

https://www.tunefind.com/show/patrick-melrose/season-1/63797#_=_

 

 

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Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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