Por Roberto Blatt
Assistimos o clássico “Encouraçado Potemkin”, do diretor russo Eisenstein, no segundo semestre de 2017 no CineFilosofia do Colégio Poty. Antes havíamos assistido “Um homem com uma câmera” do Vertov e nossa reflexão estava voltada para saber se esses filmes são arte ou propaganda (publicidade artística) em prol do regime soviético.
Escrito desse jeito pode parecer um tanto desarticulada a questão, mas lemos “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, onde Walter Benjamin apresenta um “conceito” de “aura” e tambem reflete acerca da polêmica envolvendo Pintura vs Fotografia no século XIX e que foi substituída por uma ainda mais violenta entre Cinema vs Arte no século XX. Pensando sob esse prisma cabia buscar nos primeiros filmes, exemplos de cinema considerados como arte autônoma, algum de tipo de confirmação, ou negação, para essa tese. Dito de outro modo, para o filósofo alemão a aura é uma espécie de “componente essencial” da arte. De certa forma é como se ele dissesse que arte legítima possui aura, enquanto que as cópias representam perda dessa capacidade.
Falando especificamente da obra de Eisenstein e considerando que assistimos uma “cópia” de Encouraçado Potemkin quase um século depois do lançamento original estaríamos, nós, desse modo impedidos de acessar a aura do filme? Estaríamos, portanto, sem acesso ao seu aspecto artístico? Por outro lado, uma questão geral seria: dado o seu modo de produção o cinema realmente possui aura? O que de certa forma equivale a perguntar se cinema é arte.
fonte: https://quotefancy.com/quote/1089517/Walter-Benjamin-To-perceive-the-aura-of-an-object-we-look-at-means-to-invest-it-with-the
Nada desautoriza a falar do cinema como propaganda nazista e comunista. Tanto Hitler quanto Lênin fizeram uso publicitário e político do cinema. Mas tambem podemos falar de propaganda capitalista, racista, machista, consumista e classista (são muitos istas), inclusive a partir dos filmes citados ou outros como o famigerado “O Nascimento de uma Nação” de Griffith. Nem precisamos ir tão longe no tempo histórico, pode-se olhar a época atual, onde o esbranquiçado Dunkirk (EUA, 2017) é o blockbuster de guerra do momento (um filme pró-Churchil num contexto de manipulações em rede e Brexit), e assim percebemos que o engajamento do filme de Eisenstein parece adquirir uma capacidade realista impressionante.
Walter Benjamin 1990 Peter Kennard born 1949 Presented by Angela Weight 2007 http://www.tate.org.uk/art/work/P13021
A trilha sonora, na verdade, foi sobreposta posteriormente: o filme é de 1925, e foi exportado com trilha em 1926 por razões comerciais; a versão mais atual traz música de Shostakovich. Mas a impressão que temos ao ver O Encouraçado Potemkin é que a obra foi filmada já com essa possibilidade aberta. Vale ressaltar esse aspecto, pois o filme é um marco da montagem cinematográfica, da capacidade de apresentar um enredo complexo e de uma filmografia com abertura para essa junção de áudio e visual numa dimensão nova, uma mistura quase homogênea, ou uma linguagem, se quiserem, a montagem de choques. Curiosamente Eisenstein foi, inicialmente, um crítico do som no cinema, e de fato seu filme prescinde de diálogos. Ainda assim é um paradigma narrativo.
Aura, de outro lado, é um “conceito” confuso em Walter Benjamin, ao menos para leitores não iniciados na obra do filósofo alemão, como é o meu caso, e que remete à aspectos místicos da própria etimologia da palavra e seu aspecto de “sopro” (do Latim aura, do grego aura, que significa “aragem, brisa”, do Indo-Europeu awer-).
A parte esse aspecto místico-religioso da palavra, podemos dizer que, para Benjamin, aura resumidamente designa a singularidade tempo-espacial de um objeto, combinada com a estranha característica de parecer distante por mais perto que esteja. O significado disso não fica inteiramente claro no citado texto de Benjamin. Assim, só nos resta procurar articular “aura” com outras noções a fim de buscar algum sentido para esse “conceito”. A reprodutibilidade técnica, outra noção importante de Benjamin, relaciona-se com a aura de forma ambígua, é uma faca de dois gumes: destruiu a tal da aura e, ao mesmo tempo, vulgarizou a arte, disseminou-a, tornando-a acessível. O cinema, segundo o próprio Benjamin é uma arte que já nasce dentro dessa lógica da publicidade pois um filme é sempre confeccionado coletivamente e parido para dentro da sua própria exponibilidade e isso não apenas por razões comerciais.
É difícil aplicar direta e claramente o conceito de “aura” ao “Encouraçado Potemkin” no sentido de que é difícil aplicar esse conceito obscuro a qualquer filme. Explico: de certo modo aura seria a autenticidade do “aqui e agora” da obra de arte, e não suas inúmeras cópias posteriormente comercializadas ou até cultuadas. Entretanto, se pensarmos no cinema como uma arte xerocada e “virtualmente atualizada” em diferentes “aquis e agoras” mundo afora, fica impossível determinar esse ponto aural inaugural ou original, para além da cabeça do roteirista.
O problema é justamente que o cinema não tem esse “aqui e agora” original (talvez, repito, na cabeça do roteirista); ele se atualiza sempre que é exibido, e isso faz parte da sua gênese, do seu design e de seus objetivos. Qualquer um que já frequentou um set de filmagens, ou um atelier de artes plásticas compreende como é impossível determinar esse “ponto”, se é que ele é cronológico do ponto de vista da filosofia benjaminiana.
Por outro lado, se considerarmos a noção de clássico como aquele artefato da cultura que diz coisas para além do seu tempo, ou seja, que de certa forma permanece “atual”, a “aura” do filme de Eisenstein é, nesse sentido, inegável. Potemkin possui uma estética simples e firme, realista. Poderíamos nos perguntar, a título de comparação, se o filme clean de Nolan, cuja ênfase sonora parece também ser destaque, vai construir reputação similar ou se apaga depois de seus 15 minutos de fama. Ainda não assisti por isso não arrisco resposta. Mas “Potemkin”, dado o próprio contexto histórico em que foi construído, é realmente um colosso da criatividade humana; as imagens de paisagens, de mulheres e homens, de máquinas, são impressionantes.
A atualidade da sua mensagem, de seu “conteúdo”, é igualmente importante: as coletividades precisam erguer-se num levante pelos seus direitos. Essa demanda, com as devidas proporções de uma população ultrapassando os 7 bilhões de pessoas, permanece a mesma desde o século XIX. A cena do massacre da escadaria de Odessa merece todo apreço que espectadores do mundo todo sempre lhe conferiram: a tão homenageada cena do carrinho de bebê parece ser uma metáfora da condição humana em meio às revoluções. Revoluções são necessárias embora não saibamos onde elas nos levarão ou se sobreviremos ao rolar escada abaixo. Talvez seja essa, por fim, a aura de “Potemkin”: revolucionário e precisamente profético em relação às indefinições da humanidade em pleno século XXI. Quantos massacres da escadaria de Odessa a plutocracia global ainda irá promover?

Foto publicada em 20 de março de 2014 |Copyright Films sans Frontières
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Magnífico trabalho. Assisti a “O Encouraçado Potemkin” há décadas, numa época (sem blague) em que ainda se usavam encouracados. Para mim, roteirista compulsivo, embora não profissional, filmes desse quilate deveriam ser mostrados a certos youtubers que se dizem professores de roteiros cinematográficos, bitolados naquela fórmula gasta de que o roteiro deve necessariamente ser dividido em três atos, repetindo a fórmula superada de Syd Fields. Nem Eisenstein nem Glauber, tampouco Wood Allen deram bola pra isso. Não quero me alongar neste comentário. Encerro-o parabenizando a você pelo belo presente escolhido.
Heitor Herculano Dias
Olá Herculano! Aqui é o Roberto , autor do texto, eu fico muito feliz que uma pessoa tão culta como você tenha gostado do meu texto. Agradeço de coração, de verdade.
Um abraço
Mandou muito bem, Betão! Adorei o texto!
Valeu queridão.
Olá. Blatt tudo bem? Acho que valeria a pena uma olhada nos próprios ensaios do Eisenstein sobre o que ele pretendeu. (Digo isso não como se ele fosse uma figura de autoridade que revelaria as ideias e mensagens ”verdadeiras” da obra. Mas justamente para avaliarmos criticamente, em como ele pensava seus filmes, de modo a verificar se seus objetivos foram ou não bem sucedidos…).
”Quando se fala em Potemtekin, em geral se assinalam dois de seus aspectos: a harmonia orgânica de sua composição em seu conjunto. E o patético do filme”.
[nota do autor: ”patético” é um termo com frequência mal usado e que empregamos aqui em seu sentido original]
(EISENSTEIN, S. A forma do filme p. 148)
”Isso significa que a solução da primeira questão da estrutura orgânica de Potemkin deve começar decifrando-se o que é subordinado à primeira condição estrutural- qualidade orgânica de um tipo geral.
Potemkin parece uma crônica (ou cinejornal) de um evento, mas funciona como um drama.(…)
E aqui, resumidos estão os conteúdos dos cinco atos:
parte I – ”Homens e vermes”. Exposição da ação, ambiente no encouraçado. Carne com vermes. Descontentamento fermenta entre os marinheiros.
Parte II- ”Drama no tombadilho” -”Todos no tombadilho!” recusa da carne podre, Cena da lona. ”Irmãos!”. Recusa a atirar. Motim. Vingança contra os oficiais.
Parte III- ”Apelo do morto” Neblina. O cadáver de Vakulinchuk é levado para o porto de Odessa. Carpindo o morto. Indignação. Demonstração.Içamento da bandeira vermelha.
Parte IV- ”As escadarias de Odessa”. Confraternização do porto com o navio. Escalares com provisões.Fuzilaria nas escadarias de Odessa. O navio dispara contra o ”Comando Geral”.
Parte V-” Encontro com a esquadra” . Noite de expectativa. Encontro com a esquadra. Máquinas. Irmãos! A esquadra se recusa a atirar. O navio passa vigorosamente pela esquadra.
Na ação dos episódios , cada parte do drama é totalmente diferente da outra, mas penetrando-as e comentando-as há a repetição.
No ”Drama do tombadilho” um pequeno grupo de marinheiros rebelados (uma pequena partícula do navio) grita” Irmãos!” quando encontra o destacamento punitivo. E as armas são baixadas.Todo o navio se junta aos sublevados.
Em ”Encontro com a esquadra”. todo o navio rebelado (uma pequena partícula da frota) lança o mesmo grito de Irmãos! em direção aos canhões da esquadra do almirante, apontados par ao Potemkin. E os canhões são abaixados: todo o organismo da frota se une ao encouraçado.
De uma célula do navio ao organismo de todo o navio; da célula da frota, ao organismo de toda a frota- assim toma corpo, no tema, o sentimentos de fraternidade revolucionária.
E isso é repetido na estrutura da obra, que tem como tema- fraternidade e revolução”. (EISENSTEIN, S. A forma do filme p. 150-151 )
(…) Não precisamos nos ater a natureza do que se chama o pathos per se. Devemos nos limitar a uma análise de uma obra patética do ponto de vista de seu receptor ou, mais exatamente com relação a midia teatral, do ponto de vista de seu efeito sobre o espectador. (…)
O pathos mostra seu efeito – quando o espectador é compelido a pular em sua cadeira. Quando é compelido a tombar quando está de pé. Quando ele é compelido a aplaudir , a berrar .Quando seus olhos são compelidos brilhar de satisfação, antes de derramar lágrimas de satisfação…Em resumo -quando o espectador é forçado a ”sair de si mesmo”.
Para usar um termo mais bonito, deveríamos dizer que o efeito de uma obra patética consiste no quer que seja que ”leve”o espectador ao êxtase. Na realidade, não há nada a se acrescentar a esta formulação porque os sintomas acima significam exatamente isso: êx-tase- literalmente. ”ficando fora de si mesmo”, o que quer dizer ”saindo de si mesmo’, ou ”saindo de sua condição ordinária”.(EISENSTEIN, A forma do filme p. 153)
(…) Em primeiro lugar, notando a condição frenética do povo e das massas que são retratados, vamos descobrir o que estamos procurando nas indicações estruturais e de composição.
Vamos nos concentrar na linha do movimento.
Há, antes de tudo, uma caótica corrida de figuras em primeiro plano. E então, ao caótica quanto, uma corrida de figuras em plano médio.
Depois, o caos do movimento muda para um motivo: o movimento rítmico dos pés dos soldados.
O tempo aumenta. O ritmo se acelera.
Nesta aceleração do movimento, do correr para baixo há o movimento oposto repentinamente perturbador- para cima: o movimento vertiginoso da massa para baixo salta para um movimento vagaroso e solene para cima da figura solitária da mãe carregando o filho morto.
Massa, Velocidade vertiginosa. Para baixo.
Mas- isso ocorre apenas por um instante.Uma vez mais experimentamos um salto de volta ao movimento para baixo.
O ritmo se acelera. O tempo aumenta.
De repente o ritmo da multidão correndo é substituído por uma velocidade semelhante – um carrinho de bebê rolando. Ele propaga a ideia de corrida para baixo para aproxima dimensão – de rolando, entendido figurativamente para fato físico de rolar. Não se trata apenas de mudança nos níveis do tempo. É além disso um salto no método de apresentação do figurativo para o físico, ocorrendo dentro da representação de rolar.
Primeiros planos saltam para planos gerais.
Movimentos caótico (da massa) – para um movimento rítmico (dos soldados)
Um tipo de movimento (pessoas correndo) – para o próximo estagio do mesmo tema do movimentos (carro de bebê rolando).
Movimento para baixo – para movimento para cima .
Muitas saraivadas de muitos fuzis – para um tiro de um dos canhões do navio.
Passo a passo- um salto de dimensão a dimensão.Um salto de qualidade a qualidade. De modo que, na contagem final, em vez de um episódio isolado (carrinho de bebê) todo o método da exposição de todo o evento realiza seus saltos: um tipo narrativo de exposição é substituído ( no erguer-se em montagem do leão de pedra) e transferido para a estrutura concentrada da imagem.Prosa visualmente rítmica salta para discurso visualmente poético.
Numa estrutura de composição idêntica ao comportamento humano arrebatado pelo pathos, como salientado acima, a sequencia das escadarias de Odessa é realizada através destas transferências a opostos: caos é substituído por ritmo, prosa- pelo tratamento poético etc. em cada degrau movimenta-se rapidamente a ação, impelida par abaixo por um salto ascendente de qualidade a qualidade, a maior intensidade, a uma dimensão mais ampla.
E vemos o tema patético , correndo na escadaria devido ao pathos do fuzilamento, penetrando do mesmo modo as profundezas da estrutura básica, que ajusta o evento plástica e ritmicamente.
(EISENSTEIN, S. A forma do filme p. 156-157)
Muito obrigado Flavio. Irei ler com atenção.
De fato Eisenstein descreve sua intenção de forma razoavelmente clara nesse texto, Flavio. E concordo que ele diz muito sobre aquilo que o filme mostra. Talvez a minha questão seja um pouco externa à essa logica própria do filme, entende ? Mas agradeço novamente pela possibilidade de ler esse texto do autor que você postou. Abraço