Por Roberto Blatt
Ontem assisti o filme BAIXO CENTRO (Brasil, 2018), uma exibição especial que o Festival Olhar de Cinema promoveu nessa edição. O filme venceu a Mostra Aurora do Festival de Tiradentes esse ano levando o Troféu Barroco – prêmio da crítica. É uma referência muito positiva embora, obviamente, nenhuma obra de arte “verdadeira” precise de chancela. Vamos, então, à obra.
Tenho assistido aos filmes hoje em dia sem me desconectar, inconscientemente, do que chamo de Paradigma de Mittell, teórico americano focado em seriados, cujo noção geral afirma a importância da abertura dos episódios. Essa noção aponta que toda abertura diz muito sobre o que vem a seguir. É um modelo publicitário de trabalho, quase marqueteiro, no bom e no mal sentido. Um momento em que a obra diz a que veio e indica as ferramentas que o espectador precisa para adentrar aquele universo, as armas que ele deve carregar.
A “abertura” de BAIXO CENTRO tem um pouco dessa potência publicitária, e digo também no bom sentido, pois a entrada forte do protagonista, cujo aspecto visual é o estereótipo de um morador de rua, nos alerta sobre o que vem a seguir: ele passeia por um cemitério. A associação é forte apenas pela imagem, a metáfora visual está dada aí e bastaria; mas, para enfatizar ainda mais um tambor percute tão forte que até o final desse belo plano sequencia ficamos em dúvida se ele é diegético ou não. Não importa. Foi uma entrada triunfal, e esse personagem nos assusta como nos assustam os marginais, os sujos, os estigmatizados, os anormais, os “nóia”.
Os becos de Belo Horizonte são mostrados como labirintos, vielas que parecem confundir nossa noção de continuidade espacial: o personagem entra por um lado e, em seguida, sai pelo outro, como se tivesse encontrado um perigoso atalho. A “vila”, descoberta no centro de BH, é barulhenta quase full time. De onde vem tanto barulho? São motores, fogos, conversas fora do quadro, rap, mais rap forte das minas, e mais conversas de pessoas que quase acreditamos que irão surgir no foco, mas logo desaparecem. Não há paz e há o perigo da noite. Constante. É o som ao redor desse “baixio das bestas”, dessa esfera social que está diante da morte com toda a sua medievalidade.
Até certo ponto ainda não sabemos mas o filme será um espetáculo dramatúrgico à parte, por conta de seus diálogos, às vezes monólogos mutuamente testemunhados. São poesias muito bem declamadas e isso gera um contraste com o ambiente e nos faz pensar nas razões que levaram à escolha desses sujeitos. Por que escolher esses personagens na vila? Por que não outros, menos cultos, mais “anormais”, mais desviantes? Trata-se de uma opção do política do filme? Mostrar um mundo de desviantes manejando a língua com domínio? Os personagens são periféricos, mas sua linguagem é central, normatizada, poética, não naturalista. Confesso que esse aspecto me incomodou um pouco, pois tenho a sensação de que é um recurso muito utilizado numa certa tradição teatral do cinema brasileiro. Tem, porém, o mérito de resgatá-lo num momento em que não está tão saturado.
Essa força e fraqueza do foco dramatúrgico é precedida e sucedida por alguns “exercícios” visuais que são extremamente sofisticados como linguagem não-verbal, como linguagem cinematográfica: a inserção de fotografias na cena em que Djamba mostra que flagrou o casal na festa é um belíssimo e transgressor espetáculo visual; também a cena de “sexo”; a imagem de uma coreografia de dedos ritmada pelo tambor ou quando Djamba olhando através de uma janela nos encara como um fantasma; são exemplos que impressionam nessa fusão de realismo com uma espécie de formalismo artístico provocativo, uma quase quebra de quarta parede.
Os depoimentos se sucedem, as histórias são desenhadas com toda a tragédia da violenta vida urbana; memórias misturam-se com “nóias”, com medos, com dívidas que são pagas somente na morte. “A morte às vezes é alívio para os parentes”, diz um personagem. “Meu pai tá fugindo até hoje” diz outro. As imagens da noite vazia parecem, por si sós, sinais de perigo, ícones de morte. Ainda assim o som não-diegético é fortíssimo nas passarelas, nos becos, nas quebradas. Ensurdecedor.
BAIXO CENTRO parece não ter centro; desenvolve-se em torno de personagens fantasmas que habitam o limbo zumbi dos nóia. Djamba, o fotógrafo, fala sobre os mortos; é a alegoria do próprio filme expressa no personagem. É um filme sobre a perplexidade da miséria que está bem diante dos nossos olhos, só precisa ser filmografada. A violência e a morte nos cercam no extracampo. A fragilidade da vida resume-se na canção da Quimbanda que uma “entidade” entoa no filme: “Egum é bandido, mas também é seu irmão, acenda uma vela, sirva com prazer, o mundo dá voltas, amanhã será você“.
Nota: 9,5/10
Recomendo a leitura do artigo sobre o filme no blog Anotacões de um Cinéfilo
https://anotacoescinefilo.com/2018/04/12/baixo-centro-ewerton-belico-samuel-marotta-2018/
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