O site Mubi está exibindo um documentário chamado “Space Dogs” (Áustria, Alemanha, 2019) dirigido pela austríaca Elsa Kremser e pelo alemão Levin Peter. O filme me faz pensar na própria noção de encenação. Em geral tenho apreço por fórmulas de documentários de observação, e há vários exemplos brasileiros que aprecio muito, tal como Fabiana (Brasil, 2018) e Diz à ela que me viu chorar (Brasil, 2019). Em ambos os casos aquilo que entendo como encenação é quase uma cereja do bolo, e está mais presente em algumas delicadezas da montagem. No geral é a câmera ligada e as cenas acontecendo, de forma “espontânea”.
Em Space Dogs, filme premiado mundo afora, a dosagem de observação e mise en scene (encenação) é bastante híbrida. O ponto de partida da obra é um poema visual e discursivo. A parte visual é a própria perspectiva do espaço, da reentrada, da explosão. O discursivo é a lenda de Laika, a primeira cadela a voar pela órbita da Terra.
Toda a história é uma jornada heróica: Laika era uma cadelinha de rua em Moscou e acabou tornando-se símbolo do progresso tecnológico. Seu sacrifício e morte na cápsula espacial e que depois explode na reentrada dá vazão à lenda de que seu fantasma ainda perambula pelas ruas da capital da Rússia.
A narração em off é perfeita, remetendo à uma espécie de radiofonia dos anos 60, em plena guerra fria; as imagens são exuberantes, impressionam desde os closes até as panorâmicas. Exuberantes mesmo, e impressiona mais ainda como a câmera acompanha os “atores” tão de perto e em alta definição.
O filme é forte e possui aviso de cenas de morte e mutilação, mas são raríssimas e o ponto inicial de maior impacto é na verdade o próprio instinto canino em ação. Ainda assim todo o tratamento que os cientistas dedicam aos animais nos parece, em geral, tortura. Algumas cenas mostram que a relação de subjugar os animais não é exclusiva dos laboratórios, alcançando inclusive um âmbito cafona de diversão.
Space Dogs é, sob vários aspectos uma obra-prima, notadamente pelo impressionante relato sobre um mundo que talvez não tenha ficado tão para trás quanto gostaríamos, no sentido humano. E humano, bem entendido, como algo diferente do que fazem os homens com os animais.
Em sentido geral eu me pergunto se o documentário, como gênero cinematográfico, caminha cada vez mais para a simples produção de simulacro?
Há alguns dias assisti um documentário sobre uma Leoa, praticamente uma rainha, do canal Discovery, e me pareceu que o roteiro escrito era digno dos melhores suspenses de Hollywood… eu me pergunto: até onde vai o documentário-simulacro ou documentário-espetáculo de nossos tempos?
Ainda assim, caso você seja um ativista da causa dos animais Space Dogs pode ser um filme muito útil, talvez até mesmo para confrontar, parcialmente, o romantismo em torno da questão, mas também para fortalecer certas compreensões de mundo que dialoguem com o antropocentrismo de forma ainda mais crítica e fecunda. Poderemos nós, humanos, contornar nossa natureza?
A resposta à essa pergunta não precisa ser nem um completo abdicar do humanismo e nem um domínio predatório tanto do ponto de vista material quanto espiritual e ecológico.
Enquanto isso, pode-se dizer que o fantasma de uma cadelinha ronda pelas ruas de Moscou. E seus descendentes continuam por lá.