Estou vendo a sensacional série I MAY DESTROY YOU, na HBO, criada, dirigida e protagonizada pela genial atriz inglesa Michaela Coel. Há toda uma série de temáticas nesse show que são realmente urgentes em termos de reflexão sobre a vida no século XXI, sem falar nas questões específicas da mulher.

 

Comecei ver ontem e madruguei até o capítulo 9, de um total de 12. Hoje termino de ver, e me admira que essa série tenha menos fama do que mereceria no Brasil. 

 

O mote inicial é um caso de estupro facilitado pelo uso de drogas, o que por aqui conhecemos como “boa noite Cinderela”, um tipo de abuso incrivelmente violento, pois a vítima está desmaiada ou semi-consciente enquanto é violada. Esse mote por si só já seria, talvez, suficiente para uma extensa abordagem. Mas a poética da série consegue ampliar a questão.

 

Em primeiro lugar trata-se de um protagonista negra, uma mulher bastante livre e hedonista. Essa característica – o uso de drogas – é ambíguo porque remete à outra perspectiva que é a liberdade de aproveitar seu próprio corpo, ainda que possa decair ultrapassando limites de auto-destruição.

 

Invoco aqui a distinção de Nietzsche para o espírito apolíneo – sóbrio e racional – versus o dionisíaco – pândego, irracional e hedonista, para classificar nossa protagonista nesse segundo grupo. A própria personagem se define como “da baixaria” em determinado momento. É um comportamento legítimo.

 

A forma, inicialmente, como essa estória de estupro é contada é realmente excelente, as coisas não são dadas de graça ao espectador. E aqui faço uma ressalva: a série começa com leveza aventureira, uma boa vida, num certo sentido, mas as coisas vão apertando e, em determinado momento sentimos o peso das coisas, o peso da consciência da violência.

 

 

É uma aula de retórica narrativa, na minha opinião. Porem, assim como personagem que se empolga com suas novas funções públicas, digamos assim, a série acaba por pesar demais ou parecer exagerada naquilo que seria uma tentativa de jogar na cara do espectador o seu drama.

 

Explico: a série consegue expor o tema da violência e do abuso com sucesso, justamente por não normalizar essa violência com a repetição, a exemplo de algumas séries que fazem disso um didatismo estúpido. E assim no momento que faz isso, com a sutileza impressionante da tomada de consciência, ou seja, quando expõe a brutalidade da situação, o que vem logo a seguir parece fazer questão de mostrar uma sequência coincidente de casos que soa exagerado, quase como a tripudiar na cabeça do expectador: “olhe quanta coisa ruim acontece!”

 

Sim, é fato que a violência no mundo é grande, e sabemos disso, mas quando se denuncia toda e qualquer violência quase que se normalizam essas coisas, tipo um programa do Datena em que as ações tornam-se corriqueiras. Acho que a série correu esse risco. Achei enfadonho por um momento, um pequeno lapso de tempo, e sei que dizer isso pode parecer petulante, mas, é o caso de ser transparente.

 

Vemos isso também quando a série faz questão de mostrar a protagonista e a imagem de fundo de um homem, quase que dizendo: “ele está aqui, na mente da personagem”, lembrando do estupro. Será necessário repisar essa obviedade?

 

 

Mas então as coisas começam a ficar interessantes porque a gente percebe que um segundo caso de abuso e, principalmente, um terceiro – ou seja essa somatória que parece querer reforçar a denúncia de forma quase panfletária – um caso que agora envolve a violência dentro do universo masculino, na verdade acrescentam novas camadas para a reflexão da questão da mulher e da proteção da pessoa humana em geral. 


Personagens muito interessantes nos são apresentados a partir da metade da série e a maneira como se inserem na trama consegue ser um passinho além do maniqueísmo mais comum nesse tipo de seriado.

 

 

Por fim há espaço para o problemas como os da cultura do cancelamento e do marketing midiático das redes. Tudo isso com uma pegada de humor e uma filmografia, o que se chama mais corretamente fotografia, mas que eu chamo de filmografia, como a escrita de câmera associada à edição. 

 

Os subtextos dos personagens são ótimos, ou seja o enredo é muito inteligente. Mas a fotografia e edição (eu chamo de filmografia, mesmo que o termo esteja incorreto) são excelentes, como pode ser visto em toda série, mas eu destaco o final do episódio 7, Happy Animals, como vemos aqui:

 

 

… e aqui:

 

 

Ou na imagem da solidão incrivelmente poética do final do episódio 8:

 

 

É isso, deixa eu continuar aqui que vou terminar os últimos 3 episódios. Vá lá e assista no bom e velho torrent do RARGB, esse patrimônio cultural da humanidade. Me refiro ao site e à série, lol.

 

 

***

Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

Visualizar Artigos