Neste blog publico minhas impressões pessoais sobre filmes e séries. Acho que a impessoalidade é uma mentira o que não significa que a pessoalidade não possa ter boa ou má qualidade, ou ambas, ou um pouco da cada. Em ciência, pra mim, a pessoalidade é, em geral de boa qualidade; em religião, misticismo, pseudo-ciência e pseudo-filosofia a qualidade é ruim, do ponto de vista do rigor e das descobertas.
A literatura ou a ficção são espaços híbridos ou, em outras palavras, podem estar entre magia e ciência, rigor e delírio. Compare Paulo Coelho e Tolkien, para entender o que falo. Ambos são ilusionistas, ressalvadas as diferenças de complexidade narrativa e qualidade ficcional. Mas a decisão sobre a qualidade de ambos pode, em última instância, ser resultado de uma pessoalidade que decide gostar mais de O Alquimista ou de O Senhor dos Anéis ou mesmo de uma decisão não-livre, digamos assim, e alguém simplesmente é tomado (às vezes como um adicto) por uma ação que o aproxima através de um conjunto (assembléia de neurônios) de sinapses a considerar essa ou aquela obra mais ou menos inteligente.
Enfim, já enrolei bastante, meu ponto é que não precisaria ter uma explicação racional ou completa (o que considero impossível, particularmente a completude, dado o conjunto de variáveis de minha história de vida) para indicar porquê estou hipnotizado pela série Raised by Wolves, de Aaron Guzikowski, exibida na HBO.
Ainda assim, quero mencionar três teóricos para me amparar, sem perder um milímetro de desprezo pelo argumento de autoridade: Mittel, Jost e Bordwell. Em textos anteriores já mencionei esses autores, mas vou recapitular o que entendo de básico de cada um. Mittel defende um modo de compreender as complexidades narrativas por meio dos vídeo-games, notadamente na forma como os jogos estabelecem regras (ver o capítulo Beginning de seu famoso livro) Jost aponta um paralelo com as histórias de ninar que a criança insiste em ouvir de novo e de novo, e Bordwell fala em significado sintomático, como aspectos ideológicos que uma determinada obra reflete segundo seu contexto histórico. Existe uma linha possível entre os dois americanos e o francês, ao menos na minha cabeça existe – sic. Textos dos três estão na internet caso você queira ler.
Mas vamos lá. Por quê estou gostando de ver Raised by Wolves e a cada dia retorno viciadamente para o próximo episódio?
Em parte as séries nos atraem pelo ambiente que criam, pela atmosfera e ritmo da história (forma), e em parte pelo argumento ou enredo em si (conteúdo). Bordwell com seus quatro tipos de significados é didático sobre o assunto (ver A Arte Do Cinema – Uma Introdução) e aponta que 1 o significado referencial é o mais básico, ou seja, é a sinopse e 2 o significado explícito é o derivado imediato do 1. Vejamos a sinopse no IMDb de Raised by Wolves:
“In the 22nd century, two androids, Mother and Father, escape an Earth devastated by war between militant atheists and a religious order known as the Mithraic to colonize the planet Kepler-22b, bringing with them human embryos with which to begin a new civilization. Twelve years later, only one child, Campion, has survived. As prospects for the future of the colony appear grim, the three are shocked to discover they are not the only refugees from Earth in this part of the universe.“
Tá aí, esse enredo já nos aponta uma série de coisas, e todas elas relativamente curiosas. A relação homem-máquina tá exposta, não é novidade, vem desde Terminator (EUA, 1984) de James Cameron, até I am a Mother (EUA, 2019) um filme da Netflix cujo plot é muito próximo de Raised by Wolves (EUA, 2019) que tem seus primeiros episódios dirigidos justamente por Ridley Scot, de Blade Runner (EUA, 1982) diretor que dispensa apresentações.
E estão dadas as referências e a fórmula do sucesso: temos uma android, Mother, mais poderosa que mil “T-1000” juntos (falo daquele do Exterminador do Futuro 2) e que ao mesmo tempo se apega ao tema da felicidade, da simplicidade e da maternidade em sentidos tradicionais (em parte ultrapassados, clichês, mas interessantes) e a racionalidade pedagógica, ligada ao plot do ateísmo versus o negacionismo religioso (aspecto sintomático/ideológico conforme Bordwell que abordarei nos próximos parágrafos); temos ainda a atmosfera exuberante e árida de filmes como Prometheus (EUA, 2012) também de Ridley Scott e que é parte da hipnose para mim.
A metodologia teórica do Mittel, que compara os primeiros episódios de uma série, a própria logo de abertura, à abertura de um videogame, ou seja, ali se estabelecem todas as regras de modo que todo episódio piloto seria o estabelecimento de um universo. Dá pra pensar na ameça nuclear da Guerra Fria a partir dessa logo?
Nesse sentido aqui, no primeiro episódio de Raised by Wolves, nós temos algumas coisas sensacionais, notadamente aquilo que considero uma espécie de homenagem aos filmes B de ficção científica: a fotografia e o design de produção são incrivelmente retrô e remetem à toda a tradição da ficção de filmes como Planeta dos Macacos (EUA, 1968) entre outros.
Portanto, tenho, até esse ponto, explicado em dois pontos porque estou fascinado por Raised by Wolves: o universo foi bem estabelecido e a atmosfera familiar (curiosamente familiar, talvez inconscientemente) me faz querer voltar para os episódios dia-a-dia como a criança que o francês François Jost vê nos espectadores (Do que as séries americanas são sintoma?) e que pede que a “mãe” conte novamente a mesma história que lhe contou ontem.
Por último, o nosso amigo David Bordwell fala em significados implícitos e sintomáticos. O 3, implícito é aquele significado que pode derivar como uma espécie de lição de moral não tão óbvia e o 4, o sintomático, é um conjunto de significados ideológicos, ou seja, que doença está por trás da arte que desenha os sintomas?
A questão aqui é sumamente intrigante, embora o episódio 3 por exemplo, tenha um final clichê típico, de gancho, mas os demais, até onde vi, nos 5 primeiros estão à altura das melhores séries, sem que isso represente garantia por tempo ilimitado, obviamente. E qual é o plano de fundo desse enredo?
Uma guerra entre ateus e religiosos. Convenhamos, essa guerra não é tão clichê no cinema. Ateus são pragmáticos e podem ter um senso de justiça muito mais adequado. E aqui, Raised by Wolves consegue me manipular de novo: já estou engajado na série torcendo por eles, os ateus, e contra os religiosos, aqueles inescrupulosos parasitas. Mudarei de lado?