O documentário “Diz a ela que me viu chorar” (Brasil, 2019) exibido na mostra competitiva do Festival 8#OLHAR DE CINEMA de Maíra Bühler é um filme realmente singelo. 

Trata-se de uma filmagem de observação e que, no entanto, possuía um objetivo claro: produzir uma contra-imagem da tradicional representação de usuários de crack. O filme mostra imagens do cotidiano de um hotel social, um projeto de acolhimento criado na gestão anterior da prefeitura de São Paulo – 2016 – e que documenta a rotina dos moradores, compostos basicamente por usuários em situação de vulnerabilidade social. 

Uma das questões que considero relevantes ao pensar essa situação – revelo aqui, antes de mais, minha condição de mero neófito tanto no gênero doc quanto na ciência em questão – mas um tema inicial da Antropologia é justamente a questão da simbiose entre observador e observado. Parece-me que isso é um problema clássico da ciência antropológica desde suas fundações. No filme de Maíra Bühler, que é antropóloga, temos um pouco desse classicismo observador que remete aos primórdios de uma antropologia do tribal e de uma visão acerca daqueles personagens quase como pessoas de outro mundo. Sem dúvida eles pertencem à outro universo do ponto de vista da classe social, em relação aos realizadores do doc. Voltarei a esse tema em breve.

Como observar sem interferir? O próprio ato de se fazer presente não seria uma interferência?

A questão transparece durante a exibição: ficamos com a impressão de que a câmera está enxertada naquela cotidianidade mas também curiosos de pensar sobre como seria o dia-a-dia no hotel social sem a presença desse mecanismo para além da própria “atuação” dos “personagens” e suas questões filmadas. 

A equipe do filme declarou que passou um mês em processo de inserção e adaptação, um período de aquisição de confiança com os moradores. De certa forma somos conduzido a admitir que o filme alcança essa espécie de suspensão da descrença, para usar um termo mais batido no jorgão cinematográfico, com leveza e certa dose de poesia imagética.

O gênero documentário destacou-se nessa edição do 8#Olhar de Cinema e procurei mobilizar meus parcos conhecimentos na área. Assim tentei comparar “Diz à ela que me viu chorar” com “Edifício Master” (Brasil, 2002) de Eduardo Coutinho. O contraste entre os filmes é grande, dada uma atitude mais presente de Coutinho no seu filme por oposição à uma ausência de Maíra Bühler no seu. Mas essa ausência é na verdade quase um simulacro porque a edição do filme de certa forma revela os mecanismos de atuação da linguagem cinematográfica. Não poderia ser diferente. Talvez a apropriação mais básica de culturas orais, por exemplo, em registro escritos na antropologia encare a mesma impossibilidade.

Conversei rapidamente com Maíra ao final da sessão e perguntei-lhe se podemos dizer que Coutinho é um cineasta da sociedade de classes enquanto o filme dela seria uma obra da sociedade de massas, com todas as questões ideológicas adjacentes. A diretora foi sincera ao dizer que não saberia responder à essa questão e gentilmente disse que iria pensar no assunto. Talvez não seja uma pergunta pertinente. Acrescentou ainda que Coutinho é um “cineasta do passado”, expressão que me desagradou um pouco porque não vejo desconexão entre passado, presente e futuro, embora talvez não seja esse o sentido que Maíra quisesse dar a expressão.

No lastro de Hannah Arendt, a filósofa húngara Agnes Heller aborda essa passagem da sociedade de classe para a sociedade de massas como um processo intensificado no mundo contemporâneo, impulsionada exponencialmente pelos fenômenos da globalização e dos saltos tecnológicos. Em todo caso não vejo o passado como algo estabelecido em outro lugar e mesmo temporalidade, o passado está presente hoje. Do mesmo modo classes sociais permanecem uma dura realidade da sociedade de massas atual. Talvez pudéssemos até mesmo recorrer ao velho Marx e pensar na lupem-proletarização do mundo contemporâneo.

SÃO PAULO, SP, 02.05.2018: PRÉDIO-SP – Moradores de prédio que desabou dormem e recebem auxilio no largo do Paissandu – Bombeiros fazem rescaldo do prédio que desabou após ser atingido por incêndio de grandes proporções no largo do Paissandu, região central de São Paulo, na manhã desta quarta-feira (2). (Foto: Nelson Antoine/Folhapress)

Você pode encontrar mais detalhes na entrevista de Agnes Heller nesse link

 

Ao final da sessão pensei bastante acerca da tese desenvolvida por Leandro Costa sobre o filme “Um Sonho de Liberdade”  segundo a qual trata-se de um filme sobre a rotina, o cotidiano. A excelente pesquisa desse crítico de cinema você pode ler no link abaixo:

 

A nova história da redenção: “Um sonho de liberdade”, de Frank Darabont

 

Em resumo a tese de Costa aponta que uma boa parte do sucesso do filme de Frank Darabont, baseado num livro de Stephen King, consiste no retrato da rotina da prisão. Essa condição se assemelha em parte à vida de muitos de nós, provavelmente a imensa maioria da população que se vê obrigada a obedecer rotinas impostas diariamente. A prisão é a máxima imposição da rotina e, embora se possa dizer que algumas das rotinas das pessoas livres sejam auto impostas, a condição é quase onipresente entre os humanos. Penso por exemplo no treino de atletas de alto rendimento, mas também na condição da mãe de família que acorda as 5h da manhã para trabalhar depois de pegar 3 latão.

 

Dentro do hotel social a rotina possui outras características e que se aproximam de uma clínica de recuperação. Aliás, uma das denúncias acerca do problema hoje é a sanção que o Bolsonazi assinou da Lei 13.840 para a internação compulsória de viciados. Muitas dessas internações ocorrem em clínicas ligadas a instituições religiosas, por sua vez ligadas a partidos políticos, que não raras vezes empregam métodos de “tratamento” próximos da tortura.  

 

“Diz à ela que me viu chorar” tem o mérito de registrar um impulso de vida dessas pessoas, um impulso livre, dentro de uma resignada dignidade básica de moradia. É importante informar que na eleição seguinte o novo prefeito fechou o projeto e a maioria dos 100 moradores agora vive novamente na rua. 

Pode-se pensar que a liberdade humana, portanto a dignidade humana, já que uma não se faz presente sem a outra, está ligada, às vezes, às pequenas ou grandes transgressões de rotinas impostas, de normatividades e estereótipos sociais, meros rótulos desprovidos de afeto. “Diz à ela que me viu chorar” possui a imensa beleza de registrar alguns desses momentos de liberdade e de transgressão afetiva.

Sobre o Autor

Não sou cineasta, mas gosto de criticar o trabalho dos outros rsrsrs

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